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22 de agosto de 2019

“Trabalhava numa startup, com videogame e cerveja, e tive burnout”

"Naquele ano aconteceu muita coisa na minha vida, mas é da demissão e do trabalho em si que eu não me recuperei."

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“Eu trabalhava em uma dessas empresas super modernas de tecnologia, com vibe de startup, sem salas nem divisões, com videogame, parede de lego, cerveja e mesa de ping pong. Fui demitida no meio de um burnout (esgotamento físico e mental intenso provocados por condições de trabalho desgastantes) que dura até hoje –  considero estar uns 80% melhor hoje.

Naquele ano aconteceu muita coisa na minha vida: eu saí de um casamento abusivo de cinco anos, fiz cirurgia no ovário, minha mãe teve câncer. Mas é da demissão e do trabalho em si que eu não me recuperei. Acho que por pior que as outras coisas fossem, elas eram claras pra mim, enquanto o processo que me fez ter o burnout ainda me confunde até hoje. É uma conta que não fecha. 

Recentemente um amigo deixou a mesma empresa e me agradeceu demais. Eu sei que não parece muito, mas a sensação foi muito boa, pois eu simplesmente não conseguia acreditar que eu tinha ajudado alguém. O agradecimento me trouxe a sensação de que eu não estava sozinha e foi uma espécie de validação de que o que tinha vivido era real.

Passei esse último ano e meio sem trabalhar, fazendo terapia para me recuperar das minhas loucuras, mágoas e exageros. Tentando aceitar que aquele não era o lugar certo pro meu perfil e buscando descobrir o que vou fazer. 

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Eu nunca tinha trabalhado num lugar desses e não percebia que estar numa equipe de conteúdo numa empresa tecnológica implicava em ter muitos chefe formados em exatas que não entendiam o valor do que uma equipe de conteúdo fazia. Outra coisa que pesava muito era a cobrança excessiva por um comportamento extrovertido idealizado, considerado erroneamente como “liderança” e “participação”.

Conforme o trabalho foi deixando de ser operacional e passou a ser conceitual, a desconfiança em cima do que minha equipe fazia cresceu, e eu sentia que passava tanto tempo provando e explicando o que eu fazia quanto trabalhando.

Problemas à vista

Mas o problema começou mesmo quando a empresa se fundiu com outra. Não tinha muitas mulheres na companhia, nem equipe de marketing. Um pouco antes da fusão, contrataram uma mulher para ser chefe de toda a comunicação da empresa e montar uma equipe de marketing.

Tinham sondado ela por meses, foi uma dessas grandes contratações. Ela chegou e revolucionou a empresa. Mas na época da fusão, trocou o CEO e entraram mais chefes homens, com uma cultura diferente, mais parecida com a do clube do bolinha, dos brothers trabalhando juntos. 

Ninguém queria ela lá apontando erros nos cálculos deles e colocando todo mundo pra trabalhar mais. Ela começou a ser deixada de fora das decisões, sofrer gaslighting pesado, ficar sem projeto, ter funcionários cortados. Não demorou muito para ela se demitir. Super bem conectada, tirou férias e logo depois partiu pra outra. 

Quem não foi demitida da equipe dela antes, se demitiu depois. Ótimos profissionais. Para estancar a saída de funcionárias, eu, que estava visivelmente abalada, ganhei um aumento.

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Nessa época, nem se eu quisesse sair eu poderia, pois tinha que cuidar da minha mãe. A cada três semanas, eu passava uma na casa dela fazendo home office para ajudá-la após as sessões de quimioterapia. Isso durou 4 meses.

Mas presenciar o processo de saída da chefe de comunicação da empresa mexeu muito comigo. Que incentivo eu teria pra fazer qualquer coisa ali, para apontar erros de cálculo, como ela fez? Eu inclusive evitava ser promovida e me tornar chefe a todo custo, porque parecia ser uma morte horrível. 

Quando o caldo entornou

Entrei numa espiral, não conseguia parar de falar da demissão dela. Todo mês na avaliação eu chorava e falava dela. Um mês depois que ela saiu teve uma festa da empresa. Eu gostava dessas festas e essa vinha em boa hora, já que o clima não andava muito bom. Mas foi nela que as coisas azedaram de vez para mim. 

O CEO se apropriou do discurso feminista na frente de 300 pessoas pra falar que a maioria da empresa era composta por mulheres e que “muitas” delas eram líderes. Ou seja, não era a maioria correspondente. E finalizou dizendo que uma “pessoa” muito importante que não estava mais lá tinha inspirado ele. 

Em resumo: ele achou que as mulheres tinham caras de idiotas para acreditar naqueles números tortos, em um discurso desnecessário e ainda usou do legado de uma mulher que se demitiu após ser fritada pela chefia. Acabou que só eu não vesti a camiseta da empresa (literalmente) na festa e saí nas fotos com cara de cu.

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Daí em diante foi ladeira abaixo pra mim. Foram 5 meses até eu ser demitida. Eu até trabalhava bem quando conseguia me isolar, mas isso não era bem visto. Eu ainda não tinha conhecimento suficiente, como agora, das vantagens da introversão no trabalho, pois a vida inteira o introvertido me foi apontado como um indivíduo que “ainda tem que desenvolver” alguma habilidade social. 

E a equipe de RH certamente sabia menos do que eu lidar com esse tipo de perfil. Era como se o comportamento valesse mais do que o próprio trabalho. E sendo mulher ainda, eu tinha uma inveja palpável dos funcionários homens introvertidos que podiam trabalhar numa boa, pois eram “assim mesmo”. E teve ainda os casos de assédio.

Assédio

Um dos chefes achou que estava tudo bem um dia me abraçar e contar que naquele dia o Skype dele estava movimentado com comentários de como eu estava gostosa. Naquele dia eu fui com um vestido mais chique para receber clientes. Depois disso, doei o vestido. 

Em outro episódio eu procurei a diretora de RH para falar do assobio que havia recebido no lounge da sinuca quando eu estava sozinha trabalhando lá. Ela disse que eu deveria ter me defendido e normalizou a questão dizendo que aquele é o andar em que fica a equipe de TI e que eles são assim mesmo. Disse que quando “mexem com ela”, ela brinca de volta. 

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No final do meu período lá, peguei um projeto que representava 15% da meta anual. Era extenso e complexo, mas eu sabia fazer. Eu que já sou bem introvertida, precisei me isolar 100% pra conseguir entregar esse projeto. Foram semanas enfiada em alguma sala de reunião. 

Na avaliação, tive que ouvir que eu era muito isolada, que não sentava na mesa, que não sorria, que ninguém sabia que eu tinha o cargo que eu tinha. Por conta disso, na festa de fim de ano, eu usei o raio da camiseta da empresa, sorri e fui legal com todo mundo – tudo isso a base de muito ansiolítico. 

Logo depois veio a demissão. No fim, ela foi a melhor coisa que podia ter me acontecido, já que eu claramente estava no lugar errado pra mim. Mas depois de um tempo, em vez de melhorar, eu piorei. Eu tinha medo de voltar a trabalhar, eu sabotava carta de apresentação, se era homem me chamando pra entrevista eu às vezes simplesmente não ia e não avisava. 

Eu tinha certeza de que eu não sabia trabalhar com nada que eu tinha trabalhado por dez anos. Foi quando descobri um nicho totalmente novo, que me dá bastante confiança e a possibilidade de poder trabalhar de casa.

Eu ainda choro e falo muito sobre essa experiência toda na terapia. Mas depois que eu soube que tudo isso tinha ajudado alguém, um amigo, vi que compartilhar essa história poderia me ajudar também.”

O Divã de hoje é anônimo.


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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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