A Cor Púrpura, romance da americana Alice Walker, se passa no sul dos Estados Unidos, no início do século XX. Celie é uma mulher que não sente raiva; quando sente, adoece. É que a raiva que ela talvez quisesse sentir é do pai, mas a Bíblia diz que devemos honrar pai e mãe, e Celie não desobedece à Bíblia. Não importa que o pai seja um homem que a espanca, nem que ele seja um estuprador que a engravidou duas vezes.
Conhecemos a história desta mulher negra, pobre e semianalfabeta por meio de cartas que ela escreveu a Deus. Muito jovem, a protagonista sai de uma casa violenta para cair em outra: se casa com um homem que trata de Sinhô____, assim mesmo, sem nome (vários homens da história não têm nome, afinal não há muita diferença entre eles).
O marido já tem filhos. O mais velho, Harpo, de 12 anos, está aprendendo a ser homem e parece captar rápido. Ele recebe Celie com uma pedrada na cabeça, porque não está interessado em ter uma nova mãe. O pai repreende com moderação, mas logo ensina que, no fundo, é assim mesmo que se deve tratar as mulheres. Em seus escritos, que não se atêm à norma culta, Celie reproduz diálogos entre pai e filho. “Harpo pergunta pro pai por que ele bate em mim. Sinhô___ fala, Porque ela é minha mulher. Depois, ela é teimosa. Todas mulher são boa pra— ele num termina. Ele só infia a cara no jornal como faz sempre. Me faz lembrar o Pai.”
Harpo perdeu a mãe assassinada e revive o terror em pesadelos constantes. Apesar de ter recebido a madrasta a pedradas, ele encontra um freio para a violência. Quando chega a vez de Harpo se casar, ele não bate na mulher. Sofia, a esposa, o confronta se há qualquer ameaça. Ela entendeu cedo que criança mulher não está segura numa família de homens, como a que a rodeou. Passou a infância enfrentando pai e irmãos e não era agora que ia deixar de brigar. Celie também entendeu cedo. Mas ela viu como terminam outras que confrontam ou fogem: são mortas. “Eu num brigo, eu fico onde me mandam. Mas eu tô viva.”
Um crime bárbaro
A história de Celie poderia ser no Brasil de 2023, onde uma mulher é vítima de violência a cada quatro horas. O último levantamento “Elas vivem: dados que não se calam” mostrou 2.423 casos de violência contra a mulher em 2022 – 495 deles, feminicídios. A edição 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou aumento de todos os indicadores de violência doméstica: agressões cresceram 2,9%; ameaças, 7,2%; chamados ao 190 subiram 8,7%; medidas protetivas, 13,7%.
Os crimes bárbaros contra mulheres chegam cedo: ainda meninas, elas experimentam violências de diferentes naturezas. Soeli Volcato foi estuprada e assassinada aos 13 anos. A criança foi morta em uma cidadezinha de Santa Catarina, ninguém respondeu pelo feminicídio.
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Soeli é um nome inventado. A narradora do livro Um crime bárbaro, de Ieda Magri, é uma professora universitária que decide remexer essa história engavetada desde os anos 1980 na cidade em que nasceu. O crime, a investigação, as memórias pessoais e as reflexões sobre a escrita se sobrepõem como um eco. A narradora escreve porque vive sempre rodeada da morte – a morte de outras mulheres.
Soeli Volcato pode ter sido morta por vingança, como um recado ao pai dela. A vida dela valia tanto quanto uma folha de papel arrancada de um caderno qualquer em que se deixa um bilhete e depois de lido é amassado e atirado no lixo. Recado dado.
A pessoalidade que mata
Enquanto vasculha a história de Soeli, a narradora recria a investigação. E o que guia as relações na comunidade dela é a pessoalidade. Todo mundo se conhece.
Lembrei de uma mulher que eu entrevistei como jornalista. Moradora de uma cidadezinha mineira, ela chamou a polícia depois de ser agredida de novo pelo marido. A viatura veio, o policial desceu. Era amigo do agressor – tomavam cerveja juntos. O agente tinha certeza que aquele era um homem bom. Enquanto a mulher se encolhia em um canto, o policial deu dois tapinhas no ombro do homem, disse que bater não podia, mas que sabia que casamento era coisa complicada. Deixou a recomendação de que se resolvessem de outro jeito e foi embora. Duas semanas depois, o homem tentou assassiná-la. A mulher escapou por um triz e foi viver escondida, fora da vista dos camaradas, e dos homens “de bem” e “pais de família” que custamos tanto a nomear: agressores.
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Em Um crime bárbaro, a narradora também conhece violências – as pequenas, para as quais as pessoas costumam não ligar. Ela se lembra da casa da avó, onde fugia do tio e do avô, que levantavam sua saia, beliscavam suas pernas e “riam da menininha que chora”. Era uma diversão sádica, que os dois praticavam sem freios. Ninguém os reprimia. Só a própria narradora, agora já adulta e olhando para trás, tenta eliminar mentalmente esses homens responsáveis pelas “pequenas agressões físicas” que sofreu. Ela imagina que acende um fósforo e queima os dois como se fossem fotografias. Depois, ela mesma os salva, um a um, porque, afinal, eles falam como “homens bons”.
Epidemia latino-americana
O livro de Ieda Magri conversa com o Garotas Mortas, livro não-ficcional da argentina Selva Almada. A escritora revisita feminicídios que não viraram manchete. Mulheres e meninas assassinadas com brutalidade, cujas mortes nunca resolvidas mostram que esse é só mais um dia normal na América Latina. Um relatório da ONU mostrou que a região é a mais letal para mulheres: em 2022, foram 4.473 feminicídios.
Não à toa a violência está espalhada na literatura latino-americana. Ficção e não-ficção narram com assombro o efeito do patriarcado. Em Temporada de Furacões, a autora mexicana Fernanda Melchor fala da brutalidade e das dificuldades de existir em uma precariedade social e afetiva. O romance parte da morte de uma mulher e narra as pessoas que formam esse tecido coletivo que faz de um povo um povo e de um país um país. É um jeito de a literatura perguntar que poder tem a sociabilidade sobre cada um de nós e que poder temos cada um sobre a estrutura social. Dá para desfazer a conjuntura violenta?
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Outra mexicana, Cristina Rivera Garza, também investiga essa pergunta. Ela narra uma história real, em que, “vinte e nove anos, três meses, dois dias” após o assassinato da irmã, pede acesso ao processo. Liliana foi morta em 16 de julho de 1990 pelo namorado. Só três décadas depois a família deu conta de insistir em conseguir justiça.
Na obra O invencível verão de Liliana, revirando o caso da irmã, a escritora Cristina passa por tantos outros: jovens mulheres assassinadas por seus parceiros em um mundo em que suas mortes são naturalizadas. A dor que ela carrega não tinha nome; a volta ao caso da irmã foi também a construção de um léxico.
Entre as narrativas de Celie e Liliana, nasceu uma palavra: feminicídio. E Cristina entendeu que a violência nos aproxima todas. “A única diferença entre minha irmã e eu é que eu nunca topei com um assassino.”
Contar a própria história
Helena – protagonista de História para matar a mulher boa – é gentil, compreensiva, resignada. Ela apanha do marido, que já deu um soco na cara dela e acelerou o carro em um cruzamento com o farol vermelho quando ela estava grávida. Ele também a estupra (a violência tem muitas possibilidades). “…ele dizia que a bunda [dela] era pequena e murcha, ou que o nariz era grande demais para o formato do rosto dela, ou então que o que ela dizia não tinha lógica.” Foram 24.382 casos, em 2022, de violência psicológica no Brasil.
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Para evitar mais transtornos, a protagonista do romance escrito por Ana Johann tentava não ser notada. Aprendeu cedo, com a mãe, que melhor não questionar as coisas como elas são. Mas um dia Helena começa a se inquietar e vai entender do que precisa. Aí descobre que pode contar a própria história, escolher as palavras para falar de si. E ser dona da própria história muda tudo.
A reflexão sobre a linguagem que no fim das contas todos esses livros fazem aponta para a palavra como um caminho. Não só porque nomear é identificar e reconhecer que um problema existe, mas porque há muito tempo outros vêm contando nossas histórias. É com a palavra que a gente liga para o 190 na emergência, no 180 para denunciar. É com a palavra que a gente escreve uma lei como a Maria da Penha, que a gente grita por justiça, e é com a palavra que a gente narra o nosso lugar no mundo. E esse lugar não pode mais ser uma câmara de tortura.