
Atenção: esse texto tem relatos sobre violências que podem ser gatilhos para algumas pessoas
Mariana* tinha 18 anos e estava com 5 meses de gestação quando sentiu algo quente escorrendo por baixo da calça do uniforme. Correu para o banheiro e, dentro da cabine, viu que tinha uma mancha de sangue sujando a calcinha. No dia anterior, o pai do filho havia “forçado o sexo” mais uma vez. A violência sexual era sofrida silenciosamente, já que a família sempre via a situação como parte da vida conjugal.
Mais tarde, quando foi ao médico, recebeu a recomendação de repouso absoluto. Foram 160 dias na cama. A preocupação era garantir a saúde do bebê. Ninguém pareceu perceber que essa mãe era, antes de tudo, uma jovem mulher em situação de vulnerabilidade social, física e financeira, que precisava de cuidados. “Só consegui superar esses traumas depois dos 30 [anos], com a minha psicóloga e com meu atual marido, que me amparam bastante”.
Por meio do PenhaS – nosso aplicativo de enfrentamento à violência contra a mulher – o Instituto AzMina recebe relatos como esse, juntamente a pergunta: a maternidade é um fator de risco para as agressões? A reportagem d’AzMina coletou o depoimento de 83 mulheres, de diferentes estados brasileiros, que sofreram com a situação de ver a violência aumentar ao se tornarem mães. Também ouvimos especialistas e buscamos estudos recentes para entender esse problema.
Sem renda, mais vulneráveis
Em 2022, mais de 18 milhões de mulheres foram vítimas de violência doméstica no Brasil. Nesse grupo, as mais agredidas por parceiros íntimos são mães. Os dados são do Fórum de Segurança Pública.
As violências, em contextos de maternidades, extrapolam as agressões físicas e psicológicas. Também são negados a essas mulheres recursos básicos, como assistência médica, comida ou dinheiro, em um período em que, muitas delas, perdem o emprego ou se tornam dependentes financeiramente. A maioria tem apenas o ensino fundamental e são negras.
Um estudo da FGV mostra que metade das mulheres perde o emprego depois da licença maternidade. E a baixa renda familiar é um fator de risco para a violência de gênero, como aponta essa outra pesquisa sobre violência doméstica na gravidez. Sem emprego e estando por mais tempo em casa, elas acabam isoladas das amigas e dos familiares, o que facilita os abusos e dificulta a saída do ciclo de violência.
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Para a psicóloga Carolina Avancini, há um cenário padrão: os episódios de violência doméstica acontecem em momentos de transição da carreira ou de vida pessoal. “Quando a mulher arranja um novo emprego, quando o casal decide morar junto, ou quando ela engravida e tem o bebê”, explica a profissional, que trabalha com vítimas no Programa de Atendimento a Violência e Estresse Pós-Traumático (PROVE) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
As demandas do recém-nascido acabam sendo um agravante no ambiente violento. “Ele gritava comigo quando o bebê demorava a dormir ou chorava durante a madrugada, falando que era só eu dar o peito. Reclamava de qualquer coisa ou ajuda que eu pedisse, jogando objetos, escreveu uma das mulheres que nos enviaram relatos.
Desfazendo mitos machistas
A estrutura social machista que tende a responsabilizar a mulher pela gestação, também vende a ideia de que as agressões não aconteceriam se a gravidez tivesse sido planejada. Porém, entre as histórias recebidas por AzMina, em 42% dos casos em que houve agressão com a chegada dos filhos, a gestação foi programada, e em muitas delas foram os próprios parceiros que pediram para a parceira engravidar.
O ‘sonho de ser pai’ já é imposto com chantagem emocional e abuso psicológico. “Ele me disse que se eu não engravidasse ele iria se separar de mim”, contou uma vítima que quase perdeu o filho duas vezes por causa das violências. Outra mulher descobriu que engravidou porque o parceiro tirou a camisinha durante o sexo.
![Infográfico sobre violência doméstica na gestação e pós-parto. Mulheres que sofreram violência durante a gestação ou três meses depois de parir 94% responderam que SIM 1,2% responderam que NÃO 4,8% responderam que TALVEZ Gestação planejada 48% (40) das gestações não foram planejadas; 42% (35) responderam que foi planejada 9% (8) disseram que apenas uma gestação ou algumas delas estavam nos planos. Tipos de violência sofrida* 78 Psicológicas 50 Moral 36 Física 36 Financeira 26 Sexual. [Destacar] O resultado mostra que 98% foram agredidas por homens. *As participantes podiam registrar mais de uma violência sofrida. Fonte: Levantamento feito pel’AzMina.](/wp-content/uploads/2023/10/INFO1.jpg)
Quando já estão em relacionamentos abusivos, as agressões tendem a se intensificar depois da gravidez. Isso ocorreu com 94% das mulheres que responderam ao levantamento feito pel’AzMina, por meio de formulário divulgado nas redes sociais. Esse sofrimento, em muitos casos, pode acabar em feminicídio.
Uma cartilha do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) diz que as gestantes vítimas de violência têm três vezes mais risco de sofrer homicídio, em comparação às que não sofrem violência nesse período. Outro estudo sobre a mortalidade em mulheres grávidas e puérperas mostra que 56% delas foram mortas por arma de fogo e 32% por objeto cortante.
“Pensa no seu filho crescendo sem pai”
É comum que mulheres que sofrem violência doméstica durante a gestação e o puerpério sejam incentivadas a contornar a situação em nome da família. Elas são empurradas para o lugar de “heroínas”, enquanto o comportamento dos parceiros é justificado pela “dificuldade de adaptação à paternidade”.
Elas relatam ter ouvido “conselhos” como: “tampa os ouvidos e sai de perto”; “sai da sala quando ele começar falar isso, você está grávida”; “pensa no seu filho crescendo sem pai”. A falta de amparo social, somada à insegurança de criar o filho sozinha, as faz manterem o silêncio.
O imaginário acerca da maternidade cultua a família nuclear (mãe, pai e filhos) e romantiza esse período. Colocando a gestação como sinônimo de felicidade, muitas mulheres não conseguem nomear ou encontrar espaço para reconhecer a violência.
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“Na sociedade ocidental, o que se espera quando se está grávida? Ah, que legal, vou ter minha família! Imagina a foto de nós três juntos? Então, fica mais difícil conseguir sair disso”, reflete a psicóloga Carolina Avancini.
A maioria das gestantes que sofre violência pelo parceiro não se considera vítima, ainda que tenha sido punida por não fazer tarefas como preparar o jantar ou lavar a louça, foi o que indicou um estudo da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a pesquisadora Driéli Pacheco Rodrigues, elas não conseguem classificar empurrões e socos como violência, porque, muitas vezes, presenciaram o comportamento agressivo na própria família, levando a ideia de “que é ruim, mas comum”.
Vítimas passam despercebidas por médicos
Por serem cobradas a se dedicarem à maternidade, os assuntos que não envolvem diretamente a gestação são adiados. Nesse cenário, a posição privilegiada dos profissionais de saúde poderia perceber e colaborar em saídas para o contexto violento. Mas nem sempre isso acontece. “A mulher grávida e, depois, a puérpera, é pouco vista como paciente de qualquer outra especialidade, inclusive a de saúde mental”, analisa a psicóloga Carolina Avancini.
Algumas das mulheres ouvidas pela reportagem d’AzMina dizem ter sentido vontade de comentar com o médico ou a equipe de saúde algumas das situações violentas que viviam durante as consultas de pré-natal. Elas não se aprofundaram por medo da informação chegar aos agressores e sofrerem represália.
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Outras não sentiram abertura para abordar o assunto, nem foram convidadas a falar, mesmo quando as consequências estavam postas, como no caso de Mariana*, que citamos no início. Ela teve sangramento após a violência sexual do parceiro.
“Não dá para dizer que ela não procurou ajuda. Ela foi ao serviço de saúde, foi atendida por um médico e ninguém conseguiu perceber aquela violência”, argumenta Lis Lemos, coordenadora do Comitê de Políticas de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres na Universidade Federal da Paraíba (COMU-UFPB).
Mães protegidas, filhos saudáveis
As vítimas encontram coragem para denunciar quando percebem que os filhos correm risco. Foi assim com a estudante Célia*. O agressor e pai de seu filho a impedia de sair de casa e, por isso, ela só conseguia falar de madrugada com os profissionais do centro de acolhimento às vítimas da faculdade, na hora em que ele dormia. O caso era grave, mas ela só se deu conta quando a violência atingiu a criança de 2 anos.
Essa postura é reflexo de uma sociedade que dá às agressões pesos desiguais. “É mais aceitável a violência contra a mulher, do que contra a criança, por isso que quando chega nos filhos choca”, analisa Lis Lemos. Essa interpretação não considera que a criança também está sendo ferida psicologicamente quando vê a mãe sendo submetida àquela situação.
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Romper com o ciclo da violência e com os relacionamentos abusivos é melhor tanto para a saúde mental e qualidade de vida das mulheres, como também para seus filhos. A conclusão está no estudo do Programa de Atendimento a Violência e Estresse Pós-Traumático, que analisou dois grupos: o primeiro com mães em depressão e outro com seus respectivos filhos, que tinham o mesmo quadro de saúde mental.
Ao submeterem as mulheres a três intervenções psicoterápicas, viram que elas apresentaram uma mudança positiva em como se sentiam. A maior descoberta foi que, quando as mães melhoraram, as crianças, que não passaram por nenhum tratamento, também evoluíram.
Buscando ajuda
No aplicativo de enfrentamento à violência doméstica d’AzMina, o PenhaS, você encontra informação, orientação e acolhimento. Lá tem um mapa dos serviços públicos de atendimento espalhados pelo Brasil, além de mulheres dispostas à escuta.
Se você está passando por isso, tenha sempre seus documentos e dos seus filhos com você. Se conseguir, procure ajuda no Centro de Referência da Mulher (CRAM) ou no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do seu território, e informe a situação que está vivendo. Também é possível pedir apoio aos agentes da Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima. Esses profissionais podem te encaminhar para a rede especializada.
E se você conhece ou está perto de mulheres que são ou podem ser vítimas: visite, converse, esteja atenta, ofereça ajuda, sem julgamentos.
*nomes fictícios