Qualquer pessoa que tenha se emocionado com o discurso de posse de Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, certamente passou a última noite em estado de choque. O Metrópoles revelou que uma ministra de Estado disse a integrantes do governo ter sido física e verbalmente assediada por Silvio – e que o Me Too Brasil, organização de acolhimento a vítimas de assédio e violência sexual, recebeu denúncias de diversas mulheres contra ele.
A organização se recusou a confirmar ao portal se ela é uma das denunciantes, para respeitar o anonimato das mulheres. E a imprensa deveria ter feito o mesmo. A ministra vem sendo procurada para comentar o caso desde junho, mas não confirma, nem nega. Isso nos sugere que, se o assédio é real, ela não desejava que viesse a público.
Embora tenha falado do assunto com figuras como Janja da Silva, esposa do presidente Lula e socióloga – que postou uma foto nesta sexta-feira –, a ministra não queria desgastar o governo com uma denúncia pública, segundo o jornal O Globo. Seja essa a razão ou não, sua escolha deveria ter sido respeitada.
A necessidade de um rosto
Não sejamos ingênuas. Como jornalista que cobriu inúmeros casos de violência contra as mulheres, sei que dar um rosto às vítimas – especialmente um rosto conhecido – é uma forma certeira de dar mais peso às denúncias. É transformar o abstrato em concreto, aproximar o público da situação relatada, criar a possibilidade de empatia.
Tudo isso, por sua vez, aumenta as chances de uma reportagem desembocar em uma investigação oficial pelas autoridades competentes. Um passo imprescindível para que o agressor, caso as acusações se confirmem, seja responsabilizado. No caso concreto, o presidente Lula já acenou para a saída de Silvio do governo, mas voltarei a isso mais adiante.
Por enquanto, vamos nos ater a seguinte questão: se o rosto pertence a uma mulher que não deseja ter sua história de violência publicizada, pouco deveria importar se ela é uma desconhecida, uma celebridade ou uma figura política. A linha ética permanece a mesma. Devemos respeitar a forma como a mulher deseja lidar com o assédio sofrido ou, ao contrário, atropelar sua vontade e jogá-la aos tubarões em nome de um suposto bem maior?
O calvário da denúncia
Não é exagero. Sabemos o calvário que é fazer uma denúncia formal de assédio – um crime tão difícil de ser comprovado, por ser geralmente cometido longe dos olhos alheios. Denunciar ainda é aguentar muita passação de pano (“ah, não foi tudo isso” ou “ele é um pai de família, não merece perder tudo por um erro”); é ser vista com suspeita (“como pode ser verdade se ninguém viu?”); ser culpabilizada (“o que ela fez para ele achar que podia agir assim?”); e ainda correr o risco de ser denunciada por calúnia ou difamação (lembram do que aconteceu com a jornalista Amanda Audi?).
É um processo que ninguém deveria enfrentar sem estar psicologicamente preparada para isso. Especialmente quando denunciar um assediador significa ter que fazê-lo sob os olhos atentos e críticos de todo o país.
Sim, é uma ministra de estado, assim como Silvio Almeida. Sim, existe inegável interesse público na história. Mas não são só as mulheres desconhecidas que devem ter seu direito ao anonimato preservado. O cargo dela não muda o fato de que, caso o assédio tenha de fato ocorrido, ela é também uma mulher forçada a lidar com a dor de sofrer uma violência sexual no ambiente de trabalho.
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Três a cada quatro brasileiras
É uma dor enfrentada por três a cada quatro brasileiras, segundo uma pesquisa de 2020 do Instituto Patrícia Galvão e da Locomotiva. E, assim como essa multidão de mulheres, a ministra pode estar lidando com emoções como medo, perda de autoconfiança, vergonha, culpa, insegurança e confusão – alguns dos sentimentos mais comuns relacionados a esse tipo de assédio, de acordo com um estudo conduzido pelo Think Eva e pelo LinkedIn.
Mais da metade das vítimas pensam “colocariam a culpa em mim”, e não seria surpreendente que isso passasse pela cabeça de uma mulher negra que, apesar de ocupar um cargo de poder, está sob intenso escrutínio desde o início do governo. Uma mulher que estaria lidando com um homem extremamente respeitado e admirado.
Silvio Almeida nega veementemente ter cometido qualquer assédio e, em seu pronunciamento em vídeo, reforçou clichês extremamente problemáticos para quem lidera o Ministério dos Direitos Humanos.
Resposta com desserviços
“Repudio tais acusações com a força do amor e do respeito que tenho pela minha esposa e pela minha amada filha de 1 ano de idade”, ele afirmou, recorrendo à velha fórmula de citar as mulheres da família como suposta prova de que não poderia cometer um assédio.
“Toda e qualquer denúncia deve ter materialidade” e “as falsas acusações, conforme definido no artigo 339 do Código Penal, configuram ‘denunciação caluniosa'”, disse ele, validando a tendência dos últimos anos de se processar cível e criminalmente mulheres que denunciam casos de violência sexual, inibindo denúncias.
Silvio, como qualquer acusado, deve ter direito à ampla defesa. Isso inclui, evidentemente, o direito de se pronunciar contra as denúncias de que é alvo. Como ministro dos Direitos Humanos, contudo, ele deveria se atentar para não repetir discursos que apelam para premissas tão rasas quanto o famoso sou pai de menina.
E, definitivamente, não deveria propagar argumentos que desconsideram fatos básicos sobre a violência sexual: que a maioria de suas vítimas não terá testemunhas, fotos ou vídeos do que aconteceu, e, que, se dependessem disso para fazer uma denúncia, o grau de subnotificação desses crimes seria ainda maior. Lembremos: atualmente, 89,4% dos casos de violência sexual não são denunciados, segundo pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Defesa necessária da mulher
Indo na contramão de Silvio, o Ministério das Mulheres, comandado por Aparecida Gonçalves, emitiu uma nota nesta sexta-feira afirmando que “é preciso que toda denúncia seja investigada de forma célere, com rigor e perspectiva de gênero”. A pasta acrescentou que as denúncias “são graves” e manifestou solidariedade às mulheres que denunciam situações de assédio. “A palavra de vocês terá sempre o nosso crédito e respeito”, diz a nota.
O movimento Mulheres Negras Decidem foi enfático: “Testemunhamos e reafirmamos que, mesmo ocupando espaços de decisão, mulheres negras seguem desprotegidas e vitimizadas”. No Bluesky, rede social semelhante ao Twitter, a socióloga Aline Passos criticou a inação do governo – que teria sido alertado há meses.
Em seu pronunciamento, Silvio afirmou que encaminharia ofícios para Controladoria-Geral da União, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Procuradoria-Geral da República para investigarem o caso, e o Palácio do Planalto informou que o caso será apurado pela Comissão de Ética da Presidência da República.
O futuro
O presidente Lula confirmou que as denúncias devem ser devidamente apuradas e que o ministro tem direito à defesa, mas já indicou que ele dificilmente permanecerá na pasta.
“Acho que não é possível a continuidade no governo, porque o governo não vai fazer jus ao seu discurso, à defesa das mulheres, inclusive dos direitos humanos, com alguém que esteja sendo acusado de assédio“, afirmou em entrevista às rádios Difusora FM, Vale FM e à televisão Divino Pai Eterno.
Ainda que Silvio Almeida caia, insisto: como fica a saúde física e mental da mulher que foi atropelada nesse processo, exposta ao mundo desrespeitosamente? É uma pergunta que o jornalismo que atropelou sua vontade não pode se esquivar de responder.