
Este texto já vinha ganhando forma quando li a coluna de janeiro da escritora Juliana Borges na revista literária Quatro Cinco Um. Ela falava de promessas de ano novo, do compromisso de expandir as fronteiras geográficas da própria estante e do que entendemos por “nossa literatura”. “Talvez o maior desafio literário de 2025 não seja escrever com mais coragem, mas ler com mais atenção“, escreveu Juliana ao justificar porque tratava desse tema.
Caiu como uma luva para a despedida que eu queria fazer neste espaço. Há algum tempo, tenho sentido falta do silêncio – aquele literal (quase impossível quando se mora em São Paulo) e aquele interno, mental (quase impossível quando se mora em 2025 conectada a sete redes sociais).
Muito provavelmente pelas horas que passo rolando feeds, tenho experimentado um grande cansaço de ideias. Uma sensação de que há muita informação circulando — de todas as qualidades, vinda de todas as fontes e embalada em todos os meios possíveis. E, ao mesmo tempo, uma sensação de dificuldade em acessar a profundidade de tudo que está sendo dito, em depurar e amarrar tanta informação e análise. Uma das consequências disso é que me sinto me repetindo, voltando a reflexões pelas quais já passei e às quais não tenho conseguido atribuir novas perspectivas.
Por isso entendi que seria hora de ler com mais atenção, ocupar o lugar de leitora apenas, para mais à frente ter algo novo a dizer.
Aluna de novo
Voltar a estudar me pareceu um caminho bom para arejar os pensamentos: neste mês, começo um mestrado.
As duas autoras que são tema da pesquisa informal, que faço há um ano e pouco, agora devem ganhar pompa de formalidade e regras da ABNT. Espero que a italiana Elena Ferrante e a francesa Annie Ernaux, que ensinam tanto sobre alteridade, também me deem pistas sobre o papel da autoria na literatura. A autoria de mulheres. É o que pretendo investigar.
No livro As margens e o ditado (traduzido por Marcello Lino; Intrínseca), que reúne textos não ficcionais, Elena Ferrante escreve sobre escrever. Uma das reflexões que faz é sobre o que significa ser uma autora e ter um repertório formado sobretudo por homens. Ela diz: “Uma mulher que deseja escrever deve lidar, inevitavelmente, não apenas com todo o patrimônio literário do qual se alimentou e em virtude do qual deseja e pode se exprimir, mas também com o fato de aquele patrimônio ser essencialmente masculino (…).”
Leia mais: O direito à amizade feminina
A libertação do ‘eu feminino’ da escrita masculina
Elena Ferrante diz que o “eu feminino alimentado de escrita masculina” aprende duas coisas que podem ser limitadoras. A primeira é achar que certas frases são universais (ainda que não sejam); a segunda é introjetar que o que faz é “uma escrita de mulheres feita para mulheres”.
A escritora conta que conhece homens cultos, grandes leitores, que nunca nem espiaram páginas escritas por nomes importantes da literatura contemporânea como Elsa Morante e Natalia Ginzburg (grandes influências para ela), nem autoras clássicas como Virginia Woolf. A própria Elena, por um tempo, tentou evitar a escrita de mulheres: “sentia que minhas ambições eram outras”.
A narração das mulheres é o centro de boa parte dos livros da autora italiana, em especial da Tetralogia napolitana, sequência de quatro livros que começa com A amiga genial (traduzido por Mauricio Santana Dias; Globo Livros). Se você não conhece a história de Lenu e Lila, não posso deixar de recomendar que faça isso. Não só porque é uma delícia de enredo, mas porque é uma fonte de palavras das quais não podemos prescindir – saímos da leitura mais fluentes em nomear nossa experiência no mundo.
Clube do livro de mulheres
Não sei se você já participou de um clube do livro para discutir um livro de Elena Ferrante ou de Annie Ernaux. Sempre me chama muita atenção a maioria absoluta de mulheres no leitorado. De um lado, me alegra que tantas mulheres se encontrem e se identifiquem nesses livros; de outro, me decepciona que tão poucos homens queiram lê-los (ou queiram falar deles).
Ernaux escreve romances autobiográficos, se narra em primeira pessoa. Seus livros trazem seu olhar para o mundo, mas ela narra muito além de si. Aliás, entre as características de sua obra que lhe renderam um Nobel de Literatura está conseguir capturar o espírito do tempo e as mudanças sociais, mesmo contando histórias privadas. Ela dá intimidade à história coletiva.
Livros como O Lugar, A Vergonha ou Uma mulher (traduzidos por Marília Garcia e publicados pela Fósforo) são retratos de relações da autora com o que há de mais familiar (literalmente) em sua origem. Mas são também um olhar para homens e mulheres que estão ali, no entorno, fazendo com que os relatos tenham a cara e o tom que têm, situando as histórias em um tempo, um espaço e um conjunto de valores.
Leia mais: O que os livros dizem sobre mulheres que viajam?
Mulheres escrevem para todos
É até meio bobo pensar que algo assim só interesse às mulheres e talvez fosse um pouco ridículo que eu estivesse aqui dizendo essa obviedade, se o óbvio fosse universal. Mas não é. E por isso ainda faz sentido dizer que mulheres escrevem para todos, por mais que soe repetitivo.
Eu poderia me alongar aqui em outros exemplos, citando livros e mais livros que abarcam um universo de interesses variados e que fazem eco em uma gama diversa de leitores. Vou me ater a mais um apenas.
Em A autobiografia da minha mãe (traduzido por Débora Landsberg; Alfaguara), a escritora Jamaica Kincaid, de Antígua e Barbuda, conta a história de Xuela. A mãe de Xuela morre quando ela nasce e o pai é um ausente em vida, que a entrega para ser criada por outra pessoa.
Ao centrar nessa protagonista que parte de ausências tão contundentes e vive em meio a uma precariedade afetiva, a história trata de como nos forjamos indivíduos, sujeitos, e onde buscamos inteireza quando nos faltam peças primordiais. Como algo assim, que diz de todos nós, pessoas que temos que nos entender com nossas faltas, poderia interessar somente às mulheres?
Despedida
Tomei a liberdade de escrever esta coluna de despedida usando sobretudo a primeira pessoa, falando de intenções, buscas e sentimentos que cogitei guardar só para mim. Mas se tem algo que aprendo com a literatura é que o pessoal e o coletivo andam juntos, e quando o íntimo toma forma de palavra, outras pessoas podem encontrar sentido no que parecia tão particular.
Agradeço a leitura e as trocas nesse espaço que ocupei com muita alegria nos últimos anos, sempre acompanhada por editoras e interlocutoras generosas e cuidadosas n’AzMina. Até breve.