Há um livro da escritora norte-americana Ursula K. Le Guin que não cansa de me fascinar. Começa pelo título: Floresta é o nome do mundo (o nome original, em inglês, é The word for world is forest). Colocar floresta e mundo como sinônimos logo de cara dá pistas de que estamos diante de uma proposta dissidente. Afinal, a visão de mundo que predominou até aqui mal lembra da floresta – vide a enrascada em que estamos.
Ursula K. Le Guin é um dos grandes nomes da ficção científica e ela abriu caminhos imaginando novos mundos, novas civilizações, novas dinâmicas sociais e culturais e até novas ciências. A escritora criou universos fantásticos que nos transportam para realidades muito diferentes da nossa e, ao mesmo tempo, semelhantes.
Publicado na década de 1970, Floresta é o nome do mundo (traduzido por Heci Regina Candiani) se passa em outro planeta. Em Athshe, os habitantes originários viviam tranquilamente, rodeados por densas florestas, alheios a comportamentos tirânicos. Até que chegam moradores da Terra, mundo devastado por problemas de todo tipo, para explorar e colonizar.
Literatura em alerta
Livros que tratam de um mundo em colapso não são novidade, mas essas histórias têm ganhado espaço. Os enredos têm abordado a insensibilidade humana ao cuidado com o planeta e a desconexão entre a nossa espécie e as outras. O recém-lançado Água Turva, da escritora gaúcha Morgana Kretzmann, ganhou ares premonitórios ao chegar às livrarias pouco antes da catástrofe climática que deixou o Rio Grande do Sul debaixo d’água.
Ambientada no estado gaúcho, a história não fala de enchentes, mas fala de como os interesses econômicos se sobrepõem a qualquer tipo de tentativa de preservação. Na história, um grupo de políticos e empresários quer construir uma hidrelétrica no parque estadual que é o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.
Morgana escreve em tom de suspense, costurando o passado e o presente das três mulheres que vão ocupar os postos de heroínas da trama – uma guarda florestal, uma liderança popular que atua como contrabandista, e uma jornalista, que trabalha como assessora parlamentar. Não me parece que a escolha por mulheres como figuras que articulam a resistência tenha sido fortuita. E aí entramos em um ponto fundamental: a crise climática também é uma questão feminista.
As mulheres e o clima
Um relatório publicado pelo braço da ONU voltado às mudanças climáticas descreveu como homens e mulheres são afetados pelo aquecimento das temperaturas globais. As diferenças deixam mulheres e meninas em uma posição de maior vulnerabilidade. Os arranjos sociais que subjugam mulheres fazem com que elas não só sejam mais impactadas, como dificultam que elas acessem recursos que poderiam amenizar os efeitos.
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Uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada no ano passado, da jornalista Jéssica Maes, mostrou que vários dos problemas sociais causados ou agravados pela crise climática (entre eles: migrações, violência, evasão escolar e perda de renda) afetam mulheres de forma desproporcional.
Ainda que a justiça climática feminista seja reconhecida hoje como um caminho fundamental para as respostas de que precisamos (isso está no relatório da ONU), as mulheres ainda são sub-representadas “nas delegações dos países e nas esferas decisórias“, como bem lembra Fhoutine Marie nesta coluna para AzMina.
Isso não impede, no entanto, que elas estejam na linha de frente do combate. O Grupo de Trabalho em Gênero e Clima, composto por integrantes do Observatório do Clima, mostrou que mulheres lideram ações que protegem o meio ambiente mesmo em situações de escassez.
Proteção ancestral
Em paralelo ao ativismo e à atuação política, está uma atividade que contribui para esse trabalho: contar histórias ancestrais. Mulheres quilombolas e indígenas conduzem esse processo de resistência, porque são repositórios e multiplicadoras de narrativas sobre outras formas de estar no mundo.
No livro Sou Macuxi e outras histórias, a escritora e curadora Julie Dorrico resgata memórias de forma poética. Em uma delas, ela conta como a avó a ensinou sobre figuras e mitologias que hoje a acompanham.
Os relatos são singelos e apontam para detalhes que ignoramos ao nos considerarmos a espécie superior e soberana. Ainda que não esteja discorrendo sobre proteger os rios e as florestas, é disso também que a avó fala ao nos apresentar “a filha das águas” e o “povo da terra“. Julie nos lembra em seu livro que temos respostas ancestrais às perguntas de hoje, só falta decidirmos ouvi-las.
Espécies companheiras
Contar novas histórias tem o poder de adiar o fim do mundo. Essa ideia não é minha, é do pensador e escritor indígena Ailton Krenak. No livro de ensaios Depois do fim – conversas sobre literatura e antropoceno, a psicanalista e crítica literária Fabiane Secches, que organizou a antologia de textos, conecta as ideias de Krenak às de escritoras como a polonesa Olga Tokarczuk (ganhadora do Nobel de Literatura).
Fabiane escreve na apresentação do livro que a autora polonesa também vê na literatura a capacidade de nos aproximar “com mais profundidade da vida do outro“. E Olga faz isso com radicalidade em seus livros, nos aproximando da subjetividade de outras espécies – o outro é também o não humano.
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No romance Sobre os ossos dos mortos, a escritora polonesa dá autonomia a animais silvestres que estão sendo caçados. Ao ler, acessamos a inteligência, a estratégia e até os sentimentos deles. A história, que mistura horror e humor, cutuca a certeza de que as regras humanas valem mais.
A ideia de acessar a linguagem de outros animais é uma provocação ao nosso narcisismo. O livro Autobiografia de um polvo, da escritora belga e filósofa da ciência Vinciane Despret (traduzido por Milena P. Duchiade), também faz isso de forma fascinante. Em três histórias, a autora escreve sobre uma troca ficcional de correspondências entre cientistas que investigam a poética de aranhas, vombates e polvos. As narrativas se situam em um mundo pós-capitalista, em que muito já foi destruído. Por outro lado, Vinciane cria humanos dispostos à simbiose, capazes de coexistir.
Reimaginar o mundo
A escritora, professora e pesquisadora Ana Rüsche assina um dos ensaios em Depois do Fim. Ela escreve sobre Floresta é o nome do mundo e destaca que no planeta Athshe os habitantes originários têm a capacidade de sonhar em comunhão – fundamental para que eles se organizem individual e coletivamente. Mas isso muda com a chegada dos invasores: “A presença terráquea colonizadora impede que durmam a quantidade de tempo adequado, implantando o capitalismo ’24/7′ também em outros planetas“.
Se te soou familiar, não é à toa. Quando a crise humanitária na terra indígena Yanomami chegou ao ápice, as consequências da invasão garimpeira sobre os sonhos daquele povo foram abordadas. No livro O desejo dos outros – uma etnografia dos sonhos Yanomami, a antropóloga Hanna Limulja conta: “Quando os Yanomami querem conhecer as coisas, eles se esforçam para vê-las em sonho.“
As doenças trazidas por garimpeiros, a destruição da floresta e até o barulho constante das máquinas de garimpo passaram a ameaçar essa forma de encontrar respostas. Sem os sonhos, restam menos recursos para reimaginar o mundo. Ana Rüsche diz que diante da nossa “incapacidade de produzir utopias“, é mais importante sonhar com elas.
Aniquilar os sonhos nos faz seguir aprisionados em um presente pautado pela racionalidade ocidental, que deu origem à máquina de destruição que nos tornamos. Desligá-la será impossível se não pudermos fabular outra história e outras dinâmicas para nós, terráqueas. Nisso, nós, mulheres feministas, estamos em vantagem – afinal, diariamente pensamos e construímos ferramentas para inventar outras vidas possíveis e escapar daquela que o patriarcado gostaria que tivéssemos.