Pela primeira vez, o Dia da Consciência Negra será feriado nacional no Brasil, e há muito a pensar sobre a luta antirracista e outros ativismos que também propuseram caminhos para a emancipação coletiva, como o feminismo. Esses movimentos promoveram avanços importantes na democracia brasileira, mas ainda há um longo caminho rumo à emancipação de todas as pessoas e à transformação dos princípios éticos e políticos que orientam as nossas relações sociais. Precisamos seguir atentas às armadilhas de uma sociedade que absorve o discurso sobre diversidade, mas ainda se baseia na exploração dos grupos vulneráveis para manter o poder dos mais ricos e poderosos.
Cidadania não é universal
Nos últimos 30 anos, vivenciamos uma ampliação inédita de direitos previstos na legislação para “todas as cidadãs” e “todos os cidadãos”. Mas mulheres negras e homens negros, por exemplo, não usufruíram desses direitos na maior parte da história política do país, pois foram considerados inferiores por aqueles que detêm o poder.
Mesmo que nós ainda estejamos longe da universalização da cidadania, foi graças à atuação dos movimentos negros e de mulheres negras no final da ditadura militar e na Constituinte que a estatização da saúde e, consequentemente, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), se tornaram realidade; a descriminalização do aborto alcançou a repercussão atual; e temos uma lei que obriga o ensino da história e da cultura africana, afro-descendente e indígena nas escolas. Essas transformações provocaram mudanças concretas na vida de milhares de pessoas negras e reposicionaram os movimentos sociais negros e de mulheres negras na política nacional e internacional.
Ações afirmativas
A existência das ações afirmativas, por exemplo, é fruto da militância bem sucedida de negras e negros que, pressionando o governo brasileiro em instâncias nacionais e internacionais, induziram os governantes a firmarem compromissos políticos com a reparação de desigualdades históricas de raça, gênero e classe. As políticas de cotas raciais, a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, a fundação da Secretaria Executiva de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (antiga Seppir) e a extensão tardia dos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas, majoritariamente negras, são exemplos dessas conquistas.
As ações protagonizadas por uma geração de feministas como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, entre outras, não promoveram apenas marcos legislativos, mas também transformaram nossa cultura. Os conselhos que jovens e crianças negras recebem hoje são bem diferentes dos que recebi na infância, e me alegro com isso.
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Foi doloroso crescer num tempo no qual quase ninguém achava legal ser negra. Meu cabelo era chamado de “ruim” com naturalidade e frequência. Meu corpo era espaço público para toques e xingamentos, motivo de conversas, risos e comentários maldosos, pela largura do meu nariz, o tamanho da minha boca e/ou da minha bunda.
Ser uma menina ou jovem com a minha cor e a minha história era ter que se contentar, ou se revoltar, diante das poucas oportunidades de trabalho; ler anúncios de emprego humilhantes no jornal – mostrando que algumas profissões eram só para as pessoas que tinham “boa aparência”; e ouvir conselhos das pretas velhas para não enviar foto em currículo se quiséssemos ser convocadas para as entrevistas de emprego.
Novos cenários, velhos poderes
As jovens e meninas negras de hoje vivem outro cenário. Ser uma mulher afrodescendente, com traços que demarcam a ascendência africana, gostar de rap, de samba, ser adepta do candomblé ou outras religiões afro-brasileiras, não é mais crime, e nem sempre é visto como algo negativo. Não é à toa que o número de pessoas brancas nesses espaços está crescendo, apesar de nós, pessoas negras, continuarmos sendo discriminadas.
Se você liga a televisão no horário nobre, vê uma apresentadora negra no jornal, uma protagonista de pele escura na novela, e por aí vai. Estamos “representadas” na mídia, “nos espaços de poder”. Na maior parte das vezes, entretanto, a presença nesses ambientes só tem valor porque eles são vistos como bens naturais, materiais e simbólicos de um grupo seleto de pessoas. Assim, o capitalismo segue rearranjando o sentido das desigualdades, se apropriando das lutas históricas da população negra e instigando a disputa por espaços limitados, elitistas e, que não foram feitos para comportar nossas existências.
Pesquisas recentes indicam que a proteção social, o acesso ao trabalho digno e bem remunerado estão diminuindo enquanto a concentração de riqueza aumenta. E muita gente que se diz feminista ou antirracista acredita que o caminho para superar as desigualdades termina com a conquista de um lugar na mesa que nossas ancestrais queriam quebrar. Os índices do genocídio de jovens negros são alarmantes e, ainda assim, tem gente que acha que a representação será a solução do racismo.
Não penso que nós, mulheres negras, devemos ignorar o papel estratégico das instituições nem os métodos de organização política, econômica e social do poder. Mas confesso: me frustra bastante a manipulação das lutas dos movimentos sociais por pessoas e grupos que rifam séculos de organização coletiva em troca de posições de prestígio e exclusividade de acesso aos recursos.
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Construindo um feminismo que ainda não existe
Particularmente, tenho muita dificuldade de lidar com tudo isso. Anos atrás, cheguei a me afastar dos movimentos sociais, desiludida com os caminhos do feminismo, da esquerda, principalmente pela superficialidade do tratamento da questão racial pela maioria desses grupos. Mas meu encontro com o feminismo negro foi potente e instigante, e me trouxe esperança depois de me sentir deslocada por anos nos circuitos feministas pautados pelas experiências de mulheres brancas e de classe média.
Me senti contemplada por essa forma de ler mundo, mas também me decepciono com as apropriações e distorções que descrevi antes. Até hoje, me sinto constrangida com posturas em nome do “feminismo” e do “antirracismo” que mais pareciam narcisismo, autoritarismo e moralismo. No pico do meu conflito, acreditei que talvez eu não fosse feminista o suficiente por conta dos meus incômodos.
Anos se passaram e, de certa forma, essa crise continua. Mas, as imposições da realidade têm me feito lidar de outra forma com os meus anseios. Esse processo me fez perceber que o feminismo em que eu acredito ainda não existe. E isso me mostrou que ficar imóvel, sofrendo pelo que me perturba, não é suficiente. Não é um ato digno das Histórias que invoco no dia a dia para orientar meu posicionamento no mundo, minhas relações de amizade, de amor, de conflito, a minha atuação como historiadora e formadora de pessoas. A sociedade que desejamos não se constrói sozinha.
Esperança no aquilombamento
Se é nítido que o abandono da radicalidade dos movimentos de mulheres negras e feministas me constrange, não tenho dúvidas que a apatia seria ainda mais angustiante. Por isso, tenho me afastado do medo que me fez questionar a minha relação com o feminismo. Isso foi fundamental para refazer meu compromisso com a construção de um feminismo que não seja seletivo, discriminatório, e caiba em uma sociedade onde exploração e opressão não sejam regras.
Dando um passo de cada vez, escolhi caminhar rumo ao lugar imaginado de forma crítica pelos meus ancestrais, das mulheres da minha cor que fizeram da experiência quilombola um horizonte organizacional para a nossa libertação. Pois, como Beatriz Nascimento, acredito que:
“O quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser guerreiro. E é também o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência, uma possibilidade nos dias de destruição”. [“O negro visto por ele mesmo”, Beatriz Nascimento, Ubu Editora, 2022]
Vida longa ao dia que se celebra a revolta negra no Brasil!