logo AzMina
26 de julho de 2024

Meu filho só queria ser livre e feliz

E lá se foi a vida de um rapaz negro de 25 anos. Levado pra penitenciária, onde sofreu, coisas horríveis, desde fome, frio, humilhação, agressão, e sabe lá mais o quê

Nós fazemos parte do Trust Project

a ilustração tem uma mulher falando em frente a dois homens, que observam a certa distância

Em 2015, foi forjado um crime. Meu filho está preso, e ele não fez nada. 

Ele foi de manhã na nossa chácara, cuidar de uns animais, pois eu estava impossibilitada, devido um acidente automobilístico que me deixou sequelas na perna esquerda. Quando voltou, estava em frente à casa, pronto pra ir trabalhar, quando policiais, muitos policiais, abordaram ele, fazendo perguntas. Depois de algumas horas levaram ele, dizendo que era só averiguação de rotina. Não fui junto porque os aros que tinha na perna me obrigaram a ficar. Levaram meu filho para uma área deserta, onde foi agredido. Ele tem problemas até hoje no ouvido esquerdo por isso. 

Não sofreu mais porque pedi pra uma amiga seguir a viatura, que depois eu pagaria o mototáxi que levou ela. Bom, lá foram pra delegacia. Os que ficaram reviraram a nossa casa procurando provas de um suposto assalto. Óbvio que não acharam nada! Isso durou quase o dia todo. Quando foi umas 14 horas, um policial pegou o celular, puxou uma foto e disse aqui é o ladrão, vamos lá terminar esse p*** logo. Essa foto tinha sido tirada 10 dias antes, numa cidade perto, onde pegaram ele e alguns colegas, que foram atrás de umas moças que moram lá em Guararapes (SP). Essa foto foi dada pra vítima reconhecer. 

Na delegacia, levaram ele numa sala onde a vítima olhou por uma fresta, e disse que era ele sim. E lá se foi a vida de um rapaz negro de 25 anos. Levado pra penitenciária, onde sofreu coisas horríveis: fome, frio, humilhação, agressão, e sabe lá mais o quê. Eu faço meditação e ensinei ele a fazer, pra superar essa fase. Foi o que me ajudou, e o ajuda, a suportar tudo isso.

Leia mais: A peregrinação de mães para comprovar a inocência de seus filhos presos injustamente

Todo dia é uma luta

Minha rotina desde o ocorrido foi intensa. Tive que esperar 40 dias pra conseguir visitá-lo pela primeira vez. Quase tive uma estafa na visita, pois os agentes não deixaram o advogado entrar comigo pra ajudar a carregar o famoso jumbo (com alimentos e outros itens). Fui de andador, carregando quase 30 quilos, colocando a bolsa na frente e dando passos, até chegar lá onde meu filho estava. Na revista corporal foi horrível, não tinha scanner, e a agente gritou comigo querendo que eu fizesse uma tal ponte (baixar o corpo pra trás até encostar a mão no chão, com a barriga pra cima e pernas abertas). Era impossível, por causa dos pinos da perna. 

Chorei tanto naquela penitenciária, que quase desidratei. Quando vi meu filho, quase parti desse mundo. Ele tinha só orelha e nariz, de tão magro que ficou. Comeu o pão que o cão amassou, sofreu tanto que eu queria que a morte viesse nos buscar pra sair desse sofrimento. 

Vivo intensamente triste, escondendo minha amargura com um sorriso no rosto, por passar tantos natais e aniversários naquele lugar, junto com homens extremamente perigosos, mas que sempre me trataram com muito respeito e carinho. Vários outros com crimes forjados também, por serem negros e pobres. Estou procurando uma forma de provar a inocência do meu filho. Mas ele é bem forte, está suportando todos esses anos, chorando escondido. Tenho certeza que chora, mas sempre sorri quando me vê. Meu filho só queria ser livre e feliz, mas vivemos em uma sociedade cruel. 

Leia mais: Por que o feminismo precisa ser antipunitivista?

O ódio aos pretos pobres 

Meu filho passou por quatro penitenciárias, está atualmente na Osvaldo Cruz, pois ganhou semiaberto, após quase 9 anos de completa reclusão. Mas ainda se encontra privado da liberdade, pagando um crime que não cometeu. Nossa justiça deveria ter investigado, um pouquinho só, pra chegar nos verdadeiros meliantes. Eles sabiam quem eram, pois foi falado pra mim que ele foi detido porque é de origem negra e pobre…

Infelizmente, nossa polícia quer mostrar pra sociedade que resolve os perrengues do dia a dia na periferia. Mas correr atrás dos verdadeiros culpados não seria tão fácil assim, então eles chegam acusando, forjando e até tirando a vida. Meu filho foi julgado pelas amizades que tinha… A vítima, um homem de posse, cirurgião renomado, rico, foi pela emoção do susto, sei lá, e confirmou que era ele. Como? Se os 4 assaltantes estavam de capuz e blusas de manga comprida. Meu filho foi levado porque tem um boné da mesma cor (cinza) e um tênis alaranjado. Os exames da terra da casa da vítima mostraram que não era compatível, teve exame no carro da vítima e não acharam nada pra incriminar meu filho. Aí fica a pergunta: POR QUÊ?

Esses anos todos levaram minha fé, minha saúde e minha esperança num mundo melhor. São 8 anos e 10 meses sem uma chance de provar a inocência dele. Por que aprovaram tantas falhas (na investigação), desde o boletim de ocorrência até hoje? De lá pra cá, já gastei tanto com advogado e levando coisas para o meu filho (porque o Estado não dá praticamente nada para os presos), gastei tanto dinheiro que daria pra comprar um carro novo.

Leia mais: Jornalistas negras e indígenas são ofendidas quando se posicionam contra racismo

Nossa libertação

Meu filho, rapaz, bom, que só queria ser livre e feliz na sociedade cruel que vivemos. Vou tentando provar a inocência dele, e a minha também, pois sou enfermeira e fui citada como informante. Segundo meu advogado na época, isso ficou só na palavra da esposa da vítima.

Hoje, aos 57 anos, sou aposentada, trabalhei na saúde municipal por anos e aposentei, após 26 anos trabalhando, mais uns anos na Santa Casa. Vivo na casa da minha genitora, que está com 81 anos, impossibilitada de viver sozinha. Confesso que vivo aqui à força, a gente nunca se deu bem, mas agora sou filha única. Ela não tem ninguém, tem gênio forte e é incapaz de falar uma palavra pra apaziguar meu sofrimento.

Mas vou levando. Eu não tenho religião, nem acredito. Vivo cada dia como se fosse o último, mas sei que irei ver meu filho longe daquele lugar, e feliz. Sou divorciada, o pai dele me agredia e eu me separei dele com medida protetiva. A minha chácara, meu recanto encantado, está lá, praticamente abandonada, pois quem me ajudava a cuidar era meu filho.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE