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9 de julho de 2020

“Minha difícil jornada por um aborto depois de ser estuprada”

"Mesmo com endometriose, engravidei após uma violência sexual e tive que percorrer um longo caminho para conseguir fazer aborto"

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“Descobri a gravidez há dois meses enquanto procurava uma justificativa para os intensos enjoos atípicos que começavam a me acompanhar. Desacreditada que pudesse ter resultado positivo pelo meu histórico clínico, fiz alguns exames de farmácia para a confirmação daquilo que me parecia distante. O resultado me silenciou, positivo. Apática e ainda descrente comecei a amadurecer a ideia de fazer um aborto devido às circunstâncias dessa gestação. 

O meu histórico clínico seria (só engravida quem quer?) desfavorável para a implantação de um embrião no meu útero.  Sou uma mulher de 41 anos diagnosticada com endometriose há quase dez, doença que ao ser identificada pelos médicos que me acompanham era sinônimo de infertilidade e desesperança caso eu quisesse engravidar.

Estava convencida, portanto, de que jamais engravidaria novamente, entretanto isso aconteceu da maneira mais inesperada possível em uma relação não consentida onde tive a minha dignidade rebaixada a circunstâncias que prefiro não retratar por serem, ainda, bastante dolorosas. 

Felizmente eu pude contar com o apoio de uma pessoa que buscou, junto a mim, toda a informação necessária – apesar de insuficiente e rasa – sobre os trâmites de um aborto “seguro”. Gostaria de salientar que o objetivo do meu relato é aproximar outras mulheres que estejam vivendo uma situação parecida com a que eu vivi, porque assim como eu, acredito que outras também buscam na internet o alento que nos é negado pelo Estado. Sinto-me no dever de compartilhar todo o esclarecimento que obtive por essa experiência pela certeza que existem tantas outras angustiadas, sozinhas e desamparadas em busca de uma informação. 

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Apesar de me incluir nos requisitos para aborto legal, optei, a princípio, pelo clandestino. Após muitas buscas na internet, tinha a convicção que seria mal vista/tratada ao procurar um hospital público para a interrupção da gravidez. 

Mandei mensagem para várias contas no Instagram a fim de encontrar um lugar seguro e particular para que eu pudesse fazer o aborto assistida por um profissional da saúde, mas não tive êxito. Entretanto, uma dessas páginas me ofereceu o auxílio de uma advogada que me instruiu a ir até a defensoria pública para que eu tivesse em mãos uma autorização judicial para abortar.

Mas mais uma vez não segui o que me foi orientado, estava assustada e assim como não queria ir para um hospital pelo constrangimento, queria menos ainda apresentar a minha situação para um juiz e ter a decisão que só caberia a mim sendo analisada por outra pessoa. 

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Desde a minha juventude tinha o conhecimento de um medicamento que fora proibido no Brasil por causar intensas contrações uterinas: o Cytotec. Ele é utilizado nos hospitais para a indução de partos e dilatação do colo e ao meu ver haveria uma grande dificuldade para encontrar esse medicamento no mercado para uso fora das delimitações hospitalares, mas estava equivocada. Ao digitar a palavra “Cytotec” no Google encontrei com certa facilidade alguns vendedores desse medicamento e logo tratei de conversar com um. 

Aparentemente eles não estão preocupados com a “cliente” ou se a venda vai ser de fato efetivada, mas sim com a rapidez da transação, não havia barganha, gentileza ou sutileza com as palavras, era um português ignorante, monossilábico e pouco afetivo. Não procurei o mais barato ou o que fosse mais gentil, o primeiro link que apareceu eu apertei e ao contrário do que faço comumente quando estou à procura de algo para adquirir, queria apenas uma certeza: de que funcionaria. Eles me asseguraram que sim, me mostraram fotos de caixas do remédio, relatos de outras mulheres que tinham utilizado as suas medicações e tinham tido êxito.

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Tratei de efetuar o pagamento conforme foi me orientado, paguei quase mil reais para ter em mãos sete medicamentos. Os remédios chegaram em três dias. Confesso que estava apreensiva por utilizá-los, mas não aguentava mais passar mal, a fadiga estava me consumindo, os enjoos matinais não cessavam e meu apetite estava sendo prejudicado. 

Eles tinham me adiantado que os remédios me trariam muita cólica e um sangramento que se estenderia por dias. Estava preparada, comprei quatro pacotes de absorvente noturnos para conter o sangramento, mas não tive a oportunidade de usá-los. Após o uso do Cytotec senti apenas uma discreta cólica, seguido por um sangramento “borra de café” nada mais. Sabia que minha tentativa tinha falhado e mais uma vez fui consumida pelo mesmo medo descomunal de quando descobri a gestação. 

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Na semana seguinte, resolvi procurar um hospital para seguir todas as etapas legais da interrupção da gestação. Procuramos por vários hospitais públicos na cidade onde moro, capital do estado, para pedir orientações de como proceder ao procurar por esse tipo de procedimento.

As ligações foram constrangedoras, recordo-me de ser tratada de modo ríspido quando atendida por homens, havia um certo pudor ao falar a palavra “aborto” por parte deles e a desinformação era operante. Após algumas informações desencontradas, algumas ligações sendo interrompidas e frases automatizadas como: “não tenho conhecimento se esse procedimento é feito aqui”, “não posso informar por telefone” e “não sei informar, aqui é apenas da portaria”, obtive êxito ao ligar para o Hospitais das Clínicas! 

Para a minha surpresa eu fui extremamente amparada por parte dos profissionais dessa instituição, desde já deixo o meu agradecimento pela triagem e por todas as pessoas que me atenderam. Após o primeiro contato na portaria principal, fui direcionada para dialogar com uma assistente social e fui direcionada, por fim, para o pronto atendimento. 

Já era noite quando chegamos ao hospital, felizmente era segunda-feira e a recepção estava deserta (um constrangimento a menos). Após uns vinte minutos de espera fui atendida por um enfermeiro e, após algumas perguntas e um aparato geral da minha saúde (como aferição de temperatura e pressão) fui encaminhada para a ginecologia. 

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Ao explicar detalhadamente a história da violência sexual ao qual fui submetida, fui perguntada se tinha feito o boletim de ocorrência, ao negar, prontamente elas me orientaram a procurar a polícia caso eu me sentisse a vontade para isso. Fui examinada, mais uma vez aferiram minha pressão, mediram minha temperatura e por fim realizaram um exame ginecológico.

Tentaram auscultar o coração do embrião com um aparelho chamado Sonar, mas não obtiveram êxito. Ao final da consulta estava com uma lista enorme de exames de sangue e um exame de ultrassom obstétrico. Tinha também o retorno que deveria ser agendado assim que o ultrassom estivesse pronto. 

Ao realizar o exame no dia seguinte, para minha surpresa, o embrião que datava de aproximadamente 6 semanas não tinha batimento cardíaco. No retorno, a médica me escutou e consultou, me encaminhou para atendimento psicológico e me deu mais um pedido de ultrassom que dessa vez tinha que ser feito no hospital das clínicas e respeitando o período de pelo menos 14 dias. 

Duas semanas depois fui fazer o ultrassom, mais uma vez a data estava compatível com um embrião de seis semanas, o que demostrava que ele não tinha se desenvolvido, e os batimentos cardíacos continuavam ausentes. Levei para a médica novamente e após atestar que o embrião já estava sem vida, agendamos o procedimento de curetagem para a sexta feira da semana seguinte. 

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Vale salientar que meu caso não se tratava de fazer a interrupção da gravidez propriamente dita, por isso consegui fazer esse procedimento sem maiores burocracias.  No dia do procedimento dei entrada bem cedo no segundo andar do hospital. Fui sozinha, já que a única pessoa que sabia desse meu procedimento estava no trabalho. Estava de jejum, conforme orientado, permaneci durante toda a manhã internada e na primeira hora da tarde fui para o bloco cirúrgico.

Depois de quarenta minutos, já estava no quarto novamente, me alimentei um pouco depois e descansei durante a tarde. À noite, já com a presença da minha acompanhante, recebi alta. Recuperei bem e fui afastada de minhas atividades laborais por 15 dias. Durante dois meses eu retornei na ginecologista de duas em duas semanas para atestarmos que estava tudo bem. Os exames de sorologia eu também repeti por duas vezes para levar para a médica verificar, mas ainda precisam ser feitos os exames de 6 meses e 1 ano. 

Agradeço por lerem a minha história e anseio que em um futuro próximo nós, mulheres, não precisemos ter tantas legislações sobre os nossos corpos.”

O relato foi dado sob a condição de anonimato.


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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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