por Paola Gibram*
Nesta semana houve uma polêmica em torno de uma “Mostra de música instrumental paulista” da qual foram excluídas todas as mulheres desta cena – e olha que não são poucas as exímias instrumentistas no estado. A majoritária presença de homens brancos, cis e privilegiados em uma mostra instrumental fomentada por dinheiro público suscitou um barulho nas redes sociais, mas também a reflexão sobre outras forma de exclusão aí embricadas.
Diante da questão básica – não incluir mulheres em um evento musical em pleno ano 2021?! – também fiquei pensando sobre outras exclusões que considero de igual importância. Questionei, por exemplo, sobre a ausência de pessoas não brancas (neste caso, com algumas poucas exceções), não hétero, não cis, bem como a predominância de pessoas de uma classe social mais privilegiada – sem querer com isso dizer que todos ali tenham grana, estou falando de um padrão geral.
Assim, pensando sobre o que define quem tem acesso a este e outros fazeres musicais e artísticos contemporâneos, pergunto: seria a técnica, o acesso à técnica e a possibilidade de exercer por muitas horas essa técnica o que define quem pode estar nos meios de música instrumental brasileira? Para muitas pessoas, em sua maioria homens que responderam às reclamações, este filtro seria algo natural, o que escancara o quanto uma crença em meritocracia e em parâmetros estabelecidos a partir da tecnocracia oprimem discretamente – mas já não tanto – todos os grupos de pessoas que não se encaixam neste padrão.
Houve tentativa de deslegitimar as críticas a partir de argumentos como estes: de que é preciso estudar para se atingir um tal nível. Outros rebatimentos ecoaram no sentido de que “a arte já está tão fragilizada neste contexto atual, ser músico/artista no Brasil é tão difícil, não vamos criticar o que já está pendenga”‘. Isso tudo me fez, por sua vez, pensar no paralelo com a crítica que ocorre constantemente dentro das universidades públicas.
Sabemos que o acesso às universidades públicas sempre foi definido pela meritocracia: até pouco tempo, entrava numa faculdade de medicina, direito ou engenharia – os cursos mais disputados, mas estendo a lógica, em outras medidas, a todos os cursos das universidades públicas – apenas quem podia se dedicar por muitas horas a seus estudos, quem teve acesso a escolas particulares, quem não precisava trabalhar ou ajudar familiares. A meritocracia criou um padrão de universidade branco e elitista.
A questão da presença das mulheres tanto nas vagas estudantis como docentes coincidiu com os movimentos emancipatórios das mulheres, sobretudo dos anos 1960 e 70 (amigos da Mostra Instrumental, vocês estão, no mínimo, atrasados!). Mais recentemente, após os anos de governo do PT e muita luta estudantil, as universidades começaram a se reestruturar por programas de cotas e ações afirmativas. Programas que ocorreram após muita crítica, debate, enfrentamento e desconstrução.
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A universidade pública está sempre prestes a implodir e é isso, justamente, que faz ela ser um lugar interessante, pois faz com que o conhecimento não fique estagnado em seus corolários, tradições colonialistas, círculos ecumênicos. Ainda que esteja sucateada pelo governo, ela não pode existir sem essas críticas. Deixaria de fazer sentido.
Volto agora à música e às artes. Justamente estes momentos difíceis acabam sendo também propícios para a auto-implosão. Apesar de nós, mulheres instrumentistas, estarmos cansadas de nos repetirmos – afinal, não é a primeira vez que nos deparamos com este problema e o expomos aos quatro ventos – novamente foi afirmado que não será mais aceito sermos excluídas dos eventos de música. Aliás, a Mostra ficou muito mais conhecida pelas críticas e rebuliço das redes do que pelas apresentações musicais em si.
Mas a crítica não pode parar, amigas, amigos, amigues. A música, as artes, assim como a universidade, precisam estar sempre em expansão, senão perdem seu sentido também. Que tipo de fazer musical é esse que define seus pares apenas por aqueles que conseguem atingir certo nível de técnica? Por aqueles que conseguem se dedicar por muitas horas a um instrumento, sem ser preciso que cuidem da casa, que trabalhem fora para sustentar a família, que tenham acesso a boas escolas de música?
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A tecnocracia, para os fazeres musicais, soa para mim idêntica à meritocracia nas universidades – define padrões dominantes, exclui outras formas de fazer música, outras formas de pensamento e expressão. Será que estamos prontes para conversar sobre isso? Acho que muita gente já pensa, mas eu aproveito os momentos críticos no que eles têm de melhor – que é o abalo das estruturas para poder falar em transformação. E isso, caros amigos, as minas são muito boas em fazer.
*Paola Gibram é antropóloga, musicista e mãe. Tem formação em Ciências Sociais, mestrado em Antropologia Social pela UFSC e doutorado em finalização na mesma área pela USP. É autora de livro e artigos acadêmicos e atua como assessora e militante junto a coletivos indígenas da região Sul e Sudeste há 15 anos. Integra, como instrumentista, diversos grupos de música popular brasileira na cidade de São Paulo, com os quais se apresentava constantemente antes da pandemia.