
O ano de 2023 mal começou, e embora já tenhamos passado por uma tentativa de golpe, também testemunhamos boas novas. Vimos Raoni Metuktire, o grande ancião e liderança Kayapó, subir a rampa do Planalto e participar da passagem coletiva de faixa para o presidente Lula.
Vimos também, pela primeira vez, o Governo Federal contar com uma pasta exclusivamente dedicada aos assuntos dos povos indígenas. Sônia Guajajara é a nossa ministra, e junto com ela estão tantos outros, de vários povos indígenas e regiões do país, para concretizar este feito inédito.
Em seu discurso, ela lembra com sabedoria que não chegou e não está ali sozinha. Nem fisicamente, nem espiritualmente. Está ali com a força dos encantados e de todos aqueles que vieram antes.
Sônia também foi eleita deputada federal pelo PSOL, assim como Juliana Cardoso (PT) e Célia Xakriabá (PSOL), por São Paulo e Minas Gerais, respectivamente. Antes disso, a atual presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana (REDE), demarcou esse caminho para as parlamentares indígenas.
E olhando um pouco mais em retrospecto, muitas outras mulheres lideraram e trabalharam pelos direitos dos povos originários. A força da ancestralidade está em saudar os anciões e quem veio antes.
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Por isso, na primeira coluna deste ano, trago aqui algumas indígenas que historicamente compõem esse corpo coletivo de luta:
Quitéria Binga (povo Pankararu)

Quitéria era parteira e curandeira. Nasceu e viveu na aldeia Saco dos Barros (Pernambuco) e tornou-se liderança ao final da década de 1970, época de intensos conflitos nas áreas próximas ao Rio São Francisco. Desde nova, promovia diálogos entre indígenas e não-indígenas das comunidades vizinhas, e por isso seu povo dizia que tinha o dom. Seu outro talento era cantar toantes, músicas dos Pankararu que ensinam ou trazem boas energias.
Preocupava-se com as crianças e, por isso, lutou pela saúde e educação delas, conseguindo uma casa de parto e creche para seu território.
Teve papel de destaque durante a Assembleia Constituinte de 1988: com outras lideranças, furou o bloqueio dos seguranças no Congresso Nacional para defender os direitos dos povos indígenas.
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Maninha Xukuru Kariri (povo Xukuru Kariri)

Registrada como Etelvina Santana da Silva, Maninha nasceu na aldeia Fazenda Canto (Alagoas). Morou em Recife por dois anos e voltou porque, na cidade, não conseguia ser quem era. “Eu percebi quem eu sou e qual o meu lugar. Precisei sair da aldeia pra sonhar quem eu sou. A partir daquele momento, eu queria vencer na terra, mas acontece que meu povo não tinha terra. Então, vencer na vida passou a ser conseguir a nossa terra”. A luta atravessou gerações de sua família, vinda desde seus bisavós.
Maninha se tornou liderança Xukuru Kariri e foi uma das criadoras da Articulação dos Povos do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme). Em sua trajetória, levou as questões das mulheres para o debate indígena, se mostrou uma pensadora e filósofa contundente, e defendia a solidariedade nas relações dos povos indígenas, com a sua pluralidade de experiências e contextos.
Em 2005, esteve entre as 52 brasileiras indicadas pelo Projeto “1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz”. Maninha morreu em outubro de 2006 por problemas de saúde.
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Tuyra Kayapó (povo Kayapó)

Tuyra é uma liderança Kayapó, muito conhecida por um episódio de protesto contra a hidrelétrica de Belo Monte.
Nos anos 1980, durante o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em Altamira (Pará), houve um debate sobre a hidrelétrica Kararaô, hoje conhecida como Belo Monte. A estrutura passaria dentro da reserva Kayapó. Tuyra encostou um terçado no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, e entoou o grito de luta do seu povo, “Tenotã-mõ”.
Seu gesto se tornou referência e gerou repercussão, fazendo com que o projeto fosse engavetado na época.
Atualmente, Tuyra integra os debates das mulheres indígenas das aldeias, que denunciam a violação dos seus territórios e corpos, além de reivindicar respeito por seus saberes ancestrais e por acesso à saúde. Ela foi uma das lideranças da comitiva Kayapó durante as edições bienais da Marcha das Mulheres Indígenas, em 2019 e 2021. “Nós, lideranças, temos muita responsabilidade, porque somos o espelho para os jovens”, Tuyra declara.
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Sineia Wapichana (povo Wapichana)

Sineia é liderança no movimento indígena de Roraima e faz parte do Conselho Indígena de Roraima (CIR) há 32 anos, dos 52 anos da organização. Formada em gestão ambiental, sua trajetória conecta saberes indígenas aos conhecimentos acadêmicos não-indígenas, tratando da pauta ambiental em espaços institucionais.
Ela impulsiona mapeamentos, coleta de informações, levantamentos socioambientais, estudos de caso e planos de gestão territorial. Esse trabalho subsidia planos de enfrentamento às mudanças climáticas em nível nacional.
Sineia mostra como os povos indígenas mapeiam, estudam, nomeiam a partir de seus saberes, contribuem para frear e lidam com as questões climáticas. Em suas palavras, “toda floresta de pé parte de um conhecimento que mantêm ela de pé.”
Em 2021, um ano após o desmatamento recorde na Amazônia, e quando a política ambiental brasileira estava sob o comando de Ricardo Salles, Sineia Wapichana foi convidada por Joe Biden para discursar na Cúpula do Clima.
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Cacique Pequena (povo Jenipapo-Kanindé)

Registrada nos papéis não-indígenas como Maria de Lourdes da Conceição Alves, a Cacique se define como “guardiã da memória, mestra da cultura, doutora da mata e professora”.
É a primeira mulher liderança do povo Jenipapo-Kanindé, da aldeia Lagoa Encantada, em Aquiraz (Ceará). Uma de suas principais vitórias foi tornar as famílias do povo Jenipapo-Kanindé reconhecidas pela Funai como indígenas. Com seu povo, conquistou a delimitação da Terra Indígena, cujo processo começou há mais de 25 anos, e que ainda não foi homologada. Também melhorou a estrutura da aldeia, onde hoje vivem cerca de 400 indígenas, conseguindo energia elétrica e uma escola. Seu legado deve continuar com as duas filhas na liderança.