
Índio eu não sou
Não me chame de “índio” porque
Esse nome nunca me pertenceu
Nem como apelido quero levar
Um erro que Colombo cometeu.
(…)
“Índio” eu não sou.
Sou Kambeba, sou Tembé
Sou Kokama, sou Sataré
Sou Guarani, sou Arawaté
Sou Tikuna, sou Suruí
Sou Tupinambá, sou Pataxó
Sou Terena, sou Tukano
Resisto com raça e fé
Márcia Wayna Kambeba
Os movimentos indígenas já conquistaram avanços históricos, e uma de suas maiores vitórias até agora pode parecer algo “simples” para os desavisados: o direito à autodeclaração. Isso é, o direito de se declararem indígenas, denominando a si mesmos.
Da invasão do que hoje conhecemos como Brasil até a Constituição de 1988, quem dizia quem era indígena eram os outros. Primeiro foram a Igreja Católica e a Coroa portuguesa, depois, o Estado, antropólogos, entre outros cientistas não-indígenas.
Nossa história colonialista inventou réguas para dizer quem era indígena e quem não era, criando ou acirrando conflitos entre povos originários. Enquanto estávamos distraídos com nomenclaturas criadas por invasores, eles poderiam assaltar a terra, impor suas crenças e matar diversas etnias.
Essa herança ainda é tão forte que, ainda hoje, existe um discurso onde não-indígenas querem medir quem é indígena “de verdade”, atravessando a autonomia de quem pode falar por si. O direito à autodeclaração sofreu e continua recebendo ataques nos dias atuais.
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O primeiro grande marco para a autodeterminação indígena é a Constituição de 1988. A partir da organização dos povos indígenas, a Carta Magna reconheceu os povos como capazes de se representarem. Até então, o Estado exercia “tutela” sobre esses povos originários, para “integrar” os indígenas à sociedade, a partir de instrumentos como o Diretório dos Índios, as políticas ditas indigenistas e órgãos como o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI).
Outro marco é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, em vigência por aqui desde 2009. A Convenção é um tratado que reconhece os direitos dos povos indígenas ao seu próprio modo de vida, à terra e a definir seus conceitos de desenvolvimento. Embora o país tenha se comprometido internacionalmente, o cumprimento e a participação na Convenção não deixou de sofrer ameaças. Em 2021, parlamentares se movimentaram para que o tratado não vigorasse mais.
Ameaças de não-indígenas
Tanto a Constituição Federal quanto a Convenção 169 foram formalmente aceitas a partir do suor de movimentos sociais indígenas. Foram anos de empenho para poderem se autodeclarar, ou seja, nomear a si e não depender da heteroidentificação -quando não-indígenas definem quem é indígena ou não.
Para não-indígenas, a régua do “ser indígena” requer uma pureza inexistente, que ignora todas as violências, escravizações e assédios sofridos ao longo dos séculos. Além disso, se apegam a características específicas de povos amazônicos, cuja história é diferente dos povos de primeiro contato, aqueles da costa brasileira que primeiro se depararam com os invasores em 1500, como os indígenas do Nordeste.
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O direito à autodeclaração é também direito à autonomia e ao reconhecimento. Se não fosse essa conquista, povos como Kalankó, Koiupanká e Jeripankó – alguns dos que foram declarados extintos pelo Estado – não teriam o direito de se autodenominar, após um intenso trabalho de sobrevivência das suas tradições e identidades.
Ao contrário do que se prega a partir de uma visão de mundo hiperindividualista, como a que vivemos atualmente, “identidade” também tem seu cunho coletivo e comunitário. Especialmente em contextos indígenas, está ligada ao pertencimento e à memória.
Uma pessoa autodeclarada indígena não está solta – ela faz parte de um coletivo. Ela não é uma subclasse de indígena, porque todas as pessoas indígenas no Brasil são autodeclaradas. O Estado que interfere nesse processo, ou pelo menos, não deveria.
Somos nós quem dizemos quem somos, dentro dos nossos parâmetros coletivos de auto-organização.
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Se hoje estamos nos espaços antes nos negados nas produções audiovisuais, na política, na academia, nos livros, dizendo “Nada sobre nós sem nós”, é porque temos garantido o direito de usar a nossa voz para dizer quem somos.
Isso é a autodeclaração. E ela é uma vitória indígena a ser celebrada.