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cae vasconcelos
22 de novembro de 2023

Mais do que visibilidade, pessoas trans ainda lutam pelo direito de ser e viver

Projetos de lei antitrans aprovados ameaçam população transgênero

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Pessoas trans são mortas no Brasil
Arte: Kath Xapi

Estamos em novembro, mês que marca uma data importante para a população trans em todo o mundo, o Dia Internacional da Memória Trans (20/11). Mas que memória pode ter uma população que ainda precisa lutar pelos direitos mais básicos como o direito ao nome, ao uso do banheiro e o direito de existir? 

Hoje, infelizmente, ainda temos mais memórias tristes do que positivas. E, aqui no Brasil, precisamos falar do projeto político de ódio que sempre nos rondou, mas que de 5 anos para cá ganhou mais força.

É inegável que a última eleição presidencial trouxe esperança. Por um momento, rolou aquela ilusão de que o bolsonarismo havia sido derrotado com a vitória de Lula e, mais ainda, com as eleições das duas primeiras pessoas trans para o Congresso – Erika Hilton e Duda Salabert. Vimos ministérios importantes, como do Esporte, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial, ocupados por pessoas aliadas às lutas trans. Mas sabemos que, nas casas legislativas, o conservadorismo ainda é imenso.

Desde 2018, quando ouvimos o primeiro discurso do finado Ministério dos Direitos Humanos à época, tivemos um aviso bem direto de qual seria uma das pautas mais importantes dos bolsonaristas: atacar pessoas trans em tudo que pudessem. Só acreditou que o discurso sobre “meninas usarem rosa e meninos, azul” era sobre roupa, quem não entende minimamente como podem ser sutis os ataques transfóbicos.

Política do ódio 

Mesmo com a principal derrota nas urnas, para presidente, a agenda retrógrada, conservadora e antiquada da extrema-direita brasileira seguiu em curso. De janeiro de 2019 até abril de 2023, 60 projetos de lei (PLs) antitrans foram criados no Brasil, segundo um levantamento da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Linguagem não-binária, cirurgias e harmonização, existência de crianças trans, presença de mulheres trans e travestis nos esportes, uso dos banheiros e combate à “ideologia de gênero” são alguns dos temas desses ataques. 

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No último mês, infelizmente, tivemos as primeiras aprovações na tramitação desses projetos. Desinformação, conservadorismo e narrativas transfóbicas fazem parte da proposta política que só tem o objetivo de perseguir e odiar pessoas trans.

Retrocessos nos municípios

Só pelo fato de serem projetos de lei já é um absurdo, porque isso demonstra que muitos parlamentares eleitos, e pagos com dinheiro público, têm usado seu tempo nas casas legislativas para atacar uma parcela da população. 

A Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou um PL que proíbe o uso do banheiro por pessoas trans em igrejas, eventos e escolas vinculados a instituições religiosas. A proposta, de autoria da vereadora Flávia Borja (PP), recebeu 26 votos favoráveis, 13 contrários e uma abstenção. 

Outro retrocesso foi um PL que veta a participação de mulheres trans e travestis em modalidades esportivas em Santa Catarina, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do estado. O deputado Jessé Lopes (PL), autor desse projeto, justifica que a proposta tem o objetivo de assegurar a igualdade de condições entre atletas, destacando a “superioridade de condicionamento físico de jogadoras trans em relação às mulheres cis”.

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A Câmara Municipal de São José dos Campos (SP) também entrou nessa lista de casas legislativas com propostas antitrans e aprovou um projeto que proíbe a participação de pessoas trans em competições esportivas. De autoria do vereador Thomaz Henrique (Novo) e coautoria do vereador Marcelo Garcia (PTB), o texto foi aprovado apesar das objeções legais levantadas pela Assessoria Jurídica da instituição – citando a Constituição Federal que estabelece a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem qualquer forma de discriminação”.

Assassinatos de pessoas trans

Pelo 15º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata a população trans em todo o mundo. Mas o assassinato começa muito antes desse corpo ser tombado. 

Segundo dados do Transgender Europe, obtidos pela ANTRA, entre 1º de outubro do ano passado e 30 de setembro deste ano, 31% dos casos de assassinatos de pessoas trans no mundo todo aconteceram aqui. Foram contabilizados 320 mortes no mundo e 100 no Brasil.

Esses projetos de lei antitrans só dão mais força a essa perseguição. Por isso, os assassinatos começam bem antes. O ódio está nas casas, nas escolas e nos trabalhos. Impede que possamos ter uma infância e uma adolescência com afeto e acolhimento como as pessoas cis podem vivenciar. Oódio nos expulsa de todos os ambientes, faz com que pessoas trans não sejam vistas como pessoas.

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Derrubando mitos

Imagina alguém não poder usar o banheiro por ser quem ela é? Isso mesmo que nunca tenha tido relatos sobre qualquer violência feita por pessoas trans no banheiro.

A extrema-direita usa de desinformação e mentiras para conseguir desumanizar corpos trans. Falam sobre mulheres trans e travestis terem vantagem nos esportes e creditam isso a uma ciência que nunca comprovou isso. E não esqueçamos que esses políticos negaram essa mesma ciência no auge da pandemia do coronavírus.

Em 2022, tive a oportunidade de conversar com dezenas de pessoas para construir o projeto Atletrans, na ESPN Brasil. Profissionais da medicina, pessoas pesquisadoras e atletas cis e trans foram ouvidas para compor os quatro episódios da websérie. 

Joanna Maranhão, ex-atleta da natação, explica de forma bem didática que a vantagem no esporte vem do dopping que, pasmem, não é usado por pessoas trans e sim por pessoas cis. Tiffany Abreu, a única atleta trans em atividade no esporte de alto rendimento no Brasil, conta que a força que ela tem a mais do que outras atletas é a de vontade, de nunca desistir.

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Queremos revolução

Outro dia tive a honra de entrevistar João Silvério Trevisan, um dos ativistas LGBTQIAP+ mais importantes do nosso país, e ele disse algo que ficou na minha cabeça: “Uma pessoa trans precisa enfrentar uma cultura inteira pra saber onde ela está e quem ela é. Eles [os conservadores] percebem a importância dessa revolução cultural”.

Durante anos e anos, vivemos às margens compulsoriamente. Homens trans e pessoas transmasculinas eram ainda mais invisíveis e precisavam usar a clandestinidade para acessar o direto ao nome, aos hormônios e às cirurgias. Mulheres trans e travestis eram restritas às realidades da noite e da prostituição. Pessoas não-binárias sequer eram escutadas.

Muita coisa já mudou, é verdade. Mas nenhum direito está garantido. Os poucos que temos foram decisões do Supremo Tribunal Federal, como a desburocratização para as retificações dos nomes e a criminalização da LGBTfobia.

Nós, pessoas trans, sequer estamos lutando pelo direito de amar. Ainda lutamos pelo direito de ser, existir e viver. Mas combater todo esse ódio é mais simples do que parece: procure se informar, acompanhe o trabalho de pessoas trans e tenha empatia acima de tudo. Só de coração aberto ganhamos força pra lutar contra os retrocessos.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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