O vereador mais votado de São Paulo foi eleito unicamente com pautas antitrans, das piores possíveis. Um ótimo exemplo de como o resultado das eleições municipais de 2024 ainda vai impactar muito a vida de grupos sociais marginalizados, principalmente da população trans.
O campeão de votos da cidade é aquele típico político da extrema-direita, que odeia as vivências trans, que quer nos impedir de usar o banheiro, entrar nas universidades, praticar esportes. Sua única pauta é o ódio à nossa existência; ainda assim, mais de 160 mil pessoas votaram nele.
Em contrapartida, a candidata da esquerda com mais votos foi Amanda Paschoal, braço direito de Erika Hilton durante os mandatos como vereadora e deputada federal. Eleita pelo PSOL com 108 mil votos, Amanda conseguiu dobrar a votação histórica que conduziu Hilton à Câmara Municipal em 2020.
As duas candidaturas eleitas mostram uma polarização assustadora: a maior cidade da América Latina odeia e ama pessoas trans. Na mesma intensidade. A cidade se vê representada em uma candidatura baseada em ódio e, ao mesmo tempo, em uma candidatura que tem o amor e protagonismo trans.
Um dos principais legados do bolsonarismo é que agora as pessoas preconceituosas não têm mais medo ou vergonha de falar o que pensam. E o ódio engaja, elege.
Votos alimentados por ódio
Eu nunca esqueço que, no primeiro dia de governo, a ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves fez questão de dizer que aquele mandato seria contra as vivências trans. Engana-se quem pensa que ela foi ingênua ao falar que “menino veste azul e menina veste rosa”. Era um recado muito direto. Ela mesma, péssima ministra, agora é senadora.
E a extrema-direita, principalmente a juventude que busca o caminho político, percebeu que o ódio às vivências trans é o caminho mais fácil para ser eleita. Zombam das nossas identidades, debocham dos nossos pronomes, fazem um escarcéu para nos impedir de acessar direitos básicos. E, em troca, ganha milhares de votos.
Queria muito viver em uma sociedade em que possamos apenas comemorar a eleição histórica de uma travesti, periférica e de esquerda, com uma votação expressiva como a de Amanda Paschoal. Mas parece impossível. Parece tão descolado da realidade que assusta. Mas eu não quero desistir de celebrar nossas vitórias, mesmo em cenários assombrosos.
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As candidaturas trans eleitas
A Vote LGBT+ – iniciativa que atua há 10 anos para aumentar a representatividade em todos os espaços da sociedade, principalmente na política – e a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) fizeram o levantamento das candidaturas deste ano. Em meio ao avanço do conservadorismo, mais de 200 lideranças LGBT+ foram eleitas em 197 cidades brasileiras (sendo 13 capitais) e em 23 estados.
Tivemos 28 pessoas trans eleitas em todo o país. Metade delas por partidos progressistas. Foram 19 pessoas eleitas para um primeiro mandato e muitas reeleições, como o caso de Benny Briolly (PSOL-RJ), importante nome da luta em Niterói (RJ), e Filipa Brunelli (PT-SP), em Araraquara (SP). Porto Alegre elegeu duas vereadoras trans, uma pelo PSOL e uma pelo PT.
Em Belo Horizonte tivemos Duda Salabert (PDT-MG), candidata à Prefeitura, que com mais de 97 mil votos, a quinta colocada na corrida eleitoral.
Mas também tivemos muitas candidaturas de partidos que vão do centro à direita, como a reeleição do vereador Thammy Miranda (PSD-SP), em São Paulo. Em 2020, ele foi eleito pelo PL. Para mim, não existe representatividade alguma em cadeiras ocupadas por partidos que lutam contra a nossa existência.
Como construir um futuro com menos ódio?
O combate à desinformação é o principal caminho para termos uma perspectiva de futuro. Só com o fim da disseminação de mentiras vamos conseguir, de forma justa, falar sobre as vivências trans.
O ódio contra nossas identidades é construído com mentiras: que a vivência trans existe para destruir a família tradicional brasileira; que pessoas trans nos esportes vão tirar espaço das pessoas cis, sobretudo mulheres cis; que mulheres trans e travestis atacarão mulheres cisgêneras no banheiro. Nada disso jamais aconteceu. Mas a extrema-direita usa o medo para capitanear votos.
Eu não acredito que as milhares de pessoas que vão às urnas eleger candidaturas de direita odeiam as populações marginalizadas. Todo mundo conhece alguém que votou dessa forma e não sairia por aí agredindo uma pessoa trans na rua. Infelizmente, o fascismo entrou nos nossos lares e, principalmente, nas nossas periferias. Como podemos retomar essa narrativa?
Nessa luta, o trabalho jornalístico sério e engajado na proteção dos direitos humanos será fundamental. Não existe combate à desinformação sem o jornalismo. Mas esse jornalismo não pode ser conivente com a transfobia e muito menos ser declaratório.
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Representatividade no jornalismo
Esse jornalismo precisa de profissionais que sentem na pele o impacto do ódio. Esse jornalismo precisa vir das mulheres, pessoas trans e periféricas, das pessoas pretas e indígenas. Não podemos mais tolerar coberturas desastrosas como a entrevista com o ator Elliot Page ou a transição de Maya Massafera.
Durante as eleições, a Transmídia, primeira organização jornalística do Brasil a cobrir a pauta da população trans, fez um lindo trabalho de combate à desinformação. Tive a honra de fazer parte da idealização desse projeto e sei que ele poderá mudar os rumos do jornalismo.
Precisamos valorizar cada vez mais veículos seriamente comprometidos com o combate ao ódio. Veículos como AzMina, que incansavelmente luta pelos direitos das mulheres e pessoas trans. Jornalismo como o da Agência Mural, que entende as periferias como nenhum outro. Sites como o Alma Preta, que expõe todo o racismo estrutural não só na nossa sociedade, mas na comunicação, e como a Ponte Jornalismo, que denuncia as violações de direitos humanos.
Ou nos unimos para combater o fascismo, o ódio e a desinformação, ou veremos, em outras eleições, a popularização do retrocesso e das violações aos direitos básicos, já sistematicamente negligenciados.