Em setembro de 2017, eu escrevi o texto mais difícil da minha vida. Muita coisa estava acontecendo naquele momento. Tinha acabado de me formar na faculdade como jornalista, entrado na Agência Mural e perdido a minha mãe. Eu sentia que só a escrita poderia me ajudar a entender tudo.
Aliás, a entrada na Mural foi a última coisa que a minha mãe viu antes de partir. Acho que por isso esse texto permanece o mais especial, mesmo depois de ter escrito quase mil outros textos, entre reportagens e artigos opinativos.
Naquele texto consegui colocar em palavras a dor de perder a minha mãe para a depressão. Essa doença ainda é um tabu em muitos lares, principalmente nos periféricos, como o que eu cresci. Escrevendo e revisitando a vida da minha mãe, eu entendi pela primeira vez a importância de cuidarmos da nossa saúde mental.
Eu tinha 26 anos, e só no ano da morte dela a palavra depressão foi falada pela primeira vez na minha casa. Como muitas pessoas, o meu mecanismo de defesa para lidar com essa perda foi não viver o luto. A minha irmã tinha só 12 anos quando tudo aconteceu e a minha família ficou muito abalada. Eu precisava ser forte, por mim e por eles.
Lembrei de olhar pra mim
Depois do enterro da minha mãe eu só chorei num dia muito aleatório. Não lembro a situação completa, mas eu estava no metrô e tive uma crise de choro que parecia interminável. Uma das piores partes de perder alguém próximo por suicídio é lidar com a culpa, com o “eu poderia ter feito mais?”. Então, era mais fácil não pensar nisso, não sentir nada. Vivi assim por quase um ano.
A minha carreira como jornalista começou nesse caos de sentimentos que eu vivia. Da Mural fui ser repórter na Ponte Jornalismo. Passei a lidar todos os dias com casos de violações de direitos humanos, usando toda a minha emoção ali naquelas pautas, colocando minha vontade de viver naquelas reportagens. Até que uma hora, sem querer, lembrei de olhar pra mim.
Conheci a minha primeira psicóloga em uma reportagem que fiz para a Mural sobre adoção para casais LGBTs. Ela era uma das entrevistadas, mas, no fim daquela conversa, eu sabia que tinha encontrado quem me ajudaria a viver aquele luto que eu ignorava.
Não foi um processo fácil, mas foi extremamente importante. Não só emocionalmente falando, mas financeiramente também. Entrei naquele consultório com um pensamento muito forte: eu não quero adoecer, não quero ter depressão.
A saúde mental de pessoas trans
Procurar ajuda é o primeiro passo que precisamos dar, mas eu sei como o acesso à saúde mental ainda é um privilégio.
A parte financeira é a que sempre pega mais, principalmente quando falamos da população periférica e, ainda mais, da população trans.
Quando falamos da saúde mental de pessoas transmasculinas, os dados são alarmantes: 85,7% dos homens trans no Brasil já pensaram em suicídio ou tentaram contra a própria vida. O percentual foi apontado no relatório “Transexualidades e Saúde Pública”, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
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No ano em que eu procurei terapia pela primeira vez, em 2018, outro relatório foi realizado: “Homens transexuais: invisibilidade social e saúde mental”. Na pesquisa, foi constatado que 94,5% das pessoas transmasculinas participantes se sentiram deprimidas em algum momento da vida, com 66,4% apresentando ideação suicida.
Para nós, pessoas trans, tem mais um agravante para lidar nas consultas psicológicas: a transfobia. É assustador imaginar que só em 2019 a transgeneridade deixou de ser considerada como doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E isso ainda reflete muito nos atendimentos.
Terapia para lidar com a transfobia
Procuramos a terapia, na maioria das vezes, para lidar com essa transfobia estrutural que somos submetidos em todos os espaços. Nunca por sermos quem somos. Mas, para realmente cuidarmos da nossa saúde mental, precisamos ser atendidos por profissionais que tenham sensibilidade com as nossas dores.
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Eu tive a sorte de ter encontrado, até hoje, profissionais maravilhosos. Estou no meu terceiro psicólogo e sempre fui muito bem acolhido. Mas essa ainda é uma exceção.
A primeira psicóloga me ajudou a lidar com o meu luto, o segundo me auxiliou com muitas dúvidas que eu ainda tinha sobre a transição de gênero (principalmente em relação à mastectomia), e o atual me apoia em todos os sentidos da minha vida.
Pela democratização do acesso ao atendimento
Uma das principais dificuldades da minha mãe para cuidar da sua saúde mental foi a falta de acesso. À época, o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) mais perto da casa onde morávamos ficava a uma distância de duas horas via transporte público.
Hoje a terapia está mais acessível, sobretudo por conta da pandemia, quando pudemos falar mais sobre esses cuidados, mas ainda longe do ideal. Precisamos falar mais sobre depressão e questões de saúde mental, democratizar o acesso e, principalmente, preparar os profissionais para atender as singularidades das pessoas.
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Uma dica valiosa que pode mudar muita coisa é procurarmos atendimento com pessoas parecidas com a gente. Se for um profissional trans melhor ainda. A terapia é para nos ajudar, nunca para criar mais gatilhos.
Aprendi com tudo o que aconteceu na minha vida que não somos capazes de salvar ninguém. Só você pode se salvar. Mas podemos apoiar e mostrar alternativas para quem está ao nosso redor precisando de ajuda.
Depressão não é fraqueza
Depressão não é nenhuma fraqueza, não deveria ser nenhuma vergonha e muito menos um tabu. Também não devemos esperar que algo ruim aconteça com a gente para procurar ajuda.
A verdade é que, se todo mundo fizesse terapia, muitas pessoas não adoeciam, principalmente aquelas mais às margens dessa sociedade construída com racismo, transfobia, machismo e classismo.
Que nesse setembro e em todos os dias sejamos ativistas da luta pela democratização do direito à saúde.