Thamirys Nunes tinha 23 anos quando descobriu que estava grávida. Desde os 14, ela sonhava em ser mãe de menino. Achava que seria mais fácil a criação, por ter sofrido com o machismo inúmeras vezes e por não se ver capaz de cuidar de uma menina. Quando o ultrassom confirmou o desejo, foi um alívio. “Soltei um graças a Deus”, relembra.
A preocupação com o comportamento da criança surgiu perto dos dois anos. “O meu menino não tinha interesse por nada que era masculino”. Carrinho, bola, super heróis eram trocados por tudo que era visto como feminino. Depois vieram a insatisfação com as roupas e o choro quando falavam das semelhanças físicas com o pai. “Aí começou a fase da verbalização: que pena que eu não nasci menina”.
Thamirys não sabia o que estava acontecendo. Quando tentava compartilhar a angústia, não era levada a sério. Em alguns momentos foi chamada de neurótica. Em outros, ouviu que a criança era ingrata. Procurando por compreensão e acolhimento, buscou uma psicóloga. Foi quando vieram as acusações mais sérias. “Ela falou: são 10 horas da manhã, você tá com salto alto e maquiagem, como é que você vai ensinar esse menino ser homem?”, recorda.
Ela é uma menina
Foi um período de solidão. Sem saber o que, de fato, estava acontecendo. Pessoas próximas sugeriam que o filho dela era gay. “Mas eu sentia que não era isso”.
No dia em que a criança completava 4 anos, ela recebeu um artigo de uma amiga. Passou a noite inteira lendo. O texto listava alguns comportamentos comuns em crianças trans e explicava que a transgeneridade pode ser notada desde os dois anos. Quando terminou de ler, as peças finalmente se encaixaram. Ela entendeu que a filha era uma menina.
Foi uma quebra de paradigmas. Na época, Thamirys se via como alguém de direita conservadora. Não tinha contato com pessoas lgbtqiap+ e achava que orientação sexual era uma questão de escolha. As informações sobre a população trans eram escassas – tanto em livros, quanto na internet. Ela não via a possibilidade de se consultar com outras mulheres da família, porque a compreensão que buscava não estava ali. “A primeira pessoa trans que eu conheci na minha vida foi a minha filha”, desabafa.
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Da descoberta ao luto
A descoberta trouxe o luto. Um processo doloroso de despedida da imagem afetiva, do nome escolhido, dos planos que tinha com o filho. Uma das principais angústias de Thamirys era a sensação de que ao aceitar a identidade de gênero da filha, estaria traindo o filho. Para conseguir acomodar as informações e lidar com a depressão que surgiu, ela precisou de assistência psiquiátrica.
A ajuda de uma amiga também fez a diferença. As duas se encontravam numa doceria para conseguir desabafar e chorar. “Eu falava: como é que eu amo quem tá matando quem eu mais amo no mundo?”. Thamirys seguiu cuidando da filha nesse período, mas precisou se distanciar emocionalmente até conseguir se conectar de novo.
Um amor visceral
Hoje, as duas têm uma relação de cumplicidade. Um vínculo que começou a se fortalecer quando Thamirys sentiu que estava feliz com a alegria da filha. “Pensei: opa, acho que eu amo ela”. Para ela, os amores vividos são diferentes. Pelo filho, um sentimento romântico e dominador, pautado no: eu sei o que é melhor para você. Pela filha, visceral. “Eu mato e morro por ela”. Muito mais na linha do: me conta o que você precisa e eu vou atrás.
Ser mãe da Ágatha fez Thamirys fundar a ONG Minha Criança Trans – primeira do Brasil a tratar exclusivamente de questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos de crianças e adolescentes transgêneres. “Nosso lema é: ninguém solta a mãe de ninguém”.
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Uma mãe puxa a outra
Foi na ONG, junto com outras mães, que Flávia Ferreira Almeida, de 51 anos, encontrou acolhimento pela primeira vez. Quando o filho, Lune, uma pessoa trans não binária, contou da identidade de gênero, ela se sentiu confusa. “Nunca havia pensado nesta possibilidade e nem mesmo entendia direito o que era”. Junto a isso tinha o medo da violência e dos preconceitos.
O desejo era compartilhar as angústias com alguém familiar. Mas não podia contar com o pai do adolescente, por ele já ter se mostrado intolerante. O mesmo acontecia com outras pessoas da família. A sensação de que seria julgada fazia com que Flávia evitasse a partilha. “Como vou contar que não é mais filha, mas filho?”. Ela sentia vergonha.
Um dia Flávia recebeu uma ligação da mãe de um amigo de Lune. Ela também estava lidando com a transição do filho e a convidou para conhecer a ONG Minha Criança Trans. Quem a recebeu foi Thamirys Nunes, mãe de Ágatha. “Fez toda a diferença no meu processo.”
Quando Lune completou 18 anos, ele solicitou a retificação do nome e gênero. Neste mês iniciou a hormonização. Flávia sente que foi uma decisão bem pensada e amadurecida por ele. “E isso me dá tranquilidade e segurança”, conta.
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Espaço e silêncio
A jornalista Mara Manzione, de 52 anos, optou por espaço e silêncio para lidar com tudo. Aos 14 anos, o filho Nathan se revelou um menino trans. Depois de uma noite inteira acordada, ela decidiu procurar uma psicóloga. A sensação era de não saber lidar com a situação. Por orientação da profissional, Mara deixou o assunto de lado por um tempo. A ideia era deixar que o filho viesse conversar, quando quisesse.
Nesse intervalo, ela tentava entender mais do assunto. A primeira pessoa da família com quem ela se abriu foi a mãe, de 80 anos. Era, na verdade, um pedido de apoio. “Mas ela não alcançou muito bem. Acreditou que fosse influência dos amigos”. Foi um período de muitas incertezas. Sensação de que tinha perdido o controle como mãe. “Queremos que eles sejam o que a gente quer”.
Do dia da primeira conversa até os dias atuais, foi um longo processo de aceitação. Uma jornada que culminou numa transformação dela também. Mara acredita que saiu do lugar de superprotetora para amiga, alguém que incentiva o voo e se coloca como uma companheira de jornada do filho. “Me vejo de mãos dadas com ele. Isso me faz bem”, se alegra.
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Por onde começar
Se você está vivendo esse momento agora, saiba que é natural sentir negação, raiva, culpa e medo. “Dúvida sobre o próprio futuro e o da cria também é algo comum”, explica a psicóloga Patrícia Pádua Moreira.
Por implicar numa morte simbólica de uma imagem, de um nome, de uma identidade, o processo pode ser semelhante a um luto.
Para atravessar esse período, é fundamental não se exigir a dar conta de tudo sozinha. Nem se cobrar a elaborar todas as emoções de uma hora para outra. É natural que haja um período de acomodação e elaboração de todas as mudanças.
A profissional orienta buscar acompanhamento psicológico especializado, grupos de apoio e informações confiáveis. Eles vão ajudar a diminuir a sensação de solidão. “Ela não vai achar que é a única a viver essa experiência, ao ter contato com outras pessoas”, diz a psicóloga.