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cae vasconcelos
3 de junho de 2024

A transição de Maya Massafera: dos privilégios à cobertura da imprensa

O processo não começa nem termina com os hormônios ou as cirurgias; tem muitas outras coisas envolvidas quando uma pessoa conta publicamente que é trans

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maya massafera com fundo de casulo e borboletas
Arte: Kath Xapi

Quando uma pessoa famosa conta publicamente sobre sua transição de gênero, o impacto social é grande. Tem a forma como o público recebe essa informação, como a imprensa conta a história e como essa transição impacta na comunidade trans.

Eu sempre espero, infelizmente, dois grandes erros da imprensa: colocar fotos comparando o antes e depois, e trazer o “nome morto” dessa pessoa – muitas vezes no título. Com Maya Massafera não foi diferente. Mas, para falarmos de como a imprensa noticiou, precisamos nos aprofundar em várias camadas da transição de Maya.

Existe uma ideia propagada (principalmente por pessoas cisgêneras) de que uma transição de gênero começa quando uma pessoa trans faz alguma intervenção física em seu corpo, pelo uso dos hormônios ou por meio de cirurgias.

Muita gente também acredita que, depois desse passo a passo imaginário (que, para eles, toda pessoa trans precisa passar), a pessoa conclui a tal transição. Mas nada disso é real. O processo não começa nem termina com os hormônios ou as cirurgias. Há muito mais envolvido quando alguém conta publicamente que é uma pessoa trans.

Tudo começa no modo como nos sentimos e como vamos lidar com isso. No meu caso, durante toda a minha vida, sobretudo na infância e na adolescência, havia um grande incômodo no modo como o mundo me via. Não tinha a ver com o ódio ao meu corpo, nunca teve, mas com a maneira como eu me sentia e era visto.

O que define o começo de uma transição?

Essa parte da transição é a mais longa – e mais silenciosa, solitária. Demorei muitos anos para conseguir falar sobre como eu me sentia com outras pessoas, sem saber que eu não era a única pessoa que se sentia assim. Não ver outras pessoas como eu foi um dos motivos para essa demora.

Do momento em que comecei a perceber que sou uma pessoa trans, até realmente começar a vivenciar a transição para o mundo, se passaram quatro anos. Contei um pouco sobre isso no 13° capítulo do meu livro, o Transresistência.

Expressão x identidade de gênero 

No caso da Maya, não sabemos ao certo quando ela começou a entender que era uma pessoa trans, mas foi erroneamente noticiado que ela sumiu por 6 meses e voltou “transicionada”. 

O que se sabe, de fato, é que ela vinha falando com pessoas próximas há alguns anos. E que ela se inspirou e contou com o apoio de Lea Cerezo, uma das principais modelos trans do mundo. Maya já vinha se distanciando de signos e símbolos do gênero que não a contemplava, e trazendo sinais de como ela realmente se identificava.

Importante destacar, porém, que expressão de gênero é diferente de identidade de gênero, ok? Embora muitas pessoas trans passem por isso (de mudar primeiro suas roupas, sua expressão de gênero), isso não é uma norma. Não existem regras nem manuais para uma pessoa trans ser uma pessoa trans. Muitas vivências podem ser parecidas, podem inspirar, mas toda transição é única.

Leia mais: Vinte anos de luta pela visibilidade trans e contando…

Os privilégios de quem tem dinheiro e acessos

Quando Maya publicou as primeiras imagens contando que havia se reconhecido como uma pessoa trans, lembrei muito da transição do ator Elliot Page. Ele contou para o mundo que era uma pessoa trans no mesmo momento que eu contava para as pessoas próximas que também era. Fiz um texto em maio, ele em dezembro de 2020. Eu já era muito fã do trabalho e do ativismo dele, e sua transição significou muito para mim. Fiz uma carta aberta para ele na época.

Um ponto em comum sobre as transições de Maya e Elliot foi a “rapidez” com que ambos passaram por cirurgias. Deixo entre aspas porque, com toda certeza, para eles não foi rápido. E não tem nada de errado em acelerar os processos, já que, por serem pessoas famosas e com dinheiro, eles puderam encurtar o tempo que a maioria de nós precisa esperar.

O importante é manter um acompanhamento médico durante cada novo passo, para entender como nosso corpo (e nossa mente) vai acompanhar as mudanças. Se vivêssemos em um mundo que nos inclui, essa seria a realidade para todes. 

A fila de espera no SUS (Brasil) para os meninos trans que desejam realizar a mastectomia, cirurgia que Elliot fez, chega a 10 anos. Muitos acabam buscando realizar em serviços privados de saúde – e outros, assim como eu, optam por arrecadar os valores por meio de financiamentos coletivos, já que não poderiam arcar com quantias altas sozinhos.

É importante pensarmos, enquanto sociedade, como democratizar o acesso à saúde de qualidade para pessoas trans. A realidade de Maya e Elliot deveria ser a de todes nós.

Leia mais: Brasil, um país que nos ensinou a odiar as travestis? 

Cada experiência é única

Indiretamente, quando vemos alguém que acompanhamos e admiramos conseguindo acelerar alguns processos que seriam demorados para nós, nos sentimos mal, com desconfortos em muitos sentidos. Mas lembre-se mais uma vez: cada transição é única.

Não temos culpa de demorar para conseguir acessos que vem mais rápido para alguns. Mesmo que vivenciemos dias angustiantes, vamos olhar para nossa trajetória com mais carinho, sem nos comparar com pessoas que não vivem realidades como as nossas. Isso fez eu ter mais paciência e orgulho do meu caminho até aqui.

A imprensa continua escolhendo errar

Eu já cheguei a acreditar que os erros da imprensa na cobertura das vivências trans eram fruto da ignorância. Mas, quanto mais o tempo passa, mais percebo que, para boa parcela dos veículos de mídia, é uma escolha. O esvaziamento do jornalismo, que cada vez mais se mostra um caçador de engajamento, é parte do problema. A audiência pela audiência impulsiona títulos e coberturas sensacionalistas.

Respeitar a identidade de uma pessoa trans não importa nesse cenário, pois colocar o nome morto de uma personalidade traz mais cliques. Essa lógica se comprovou com o caso de Maya Massafera. São sempre os mesmos erros. O nome morto, as fotos antes da transição, o despreparo, o desrespeito. Tudo o que eu trouxe aqui nesta coluna quando falei da reportagem sobre Elliot Page, no Fantástico (TV Globo), ainda continua válido. 

Leia mais: A desastrosa entrevista do Fantástico com Elliot Page

Não existe necessidade jornalística que justifique trazer imagens que causam desconforto para a pessoa trans noticiada e para as pessoas trans no geral. Assim como não há motivos para expor o nome morto de uma pessoa trans. Tudo isso não passa de transfobia. É tão estrutural que o jornalismo não consegue pensar em outras alternativas para além das violações.

Pesquisem, leiam e sigam pessoas trans antes de escrever sobre pessoas trans. A cobertura das pautas trans tem a mesma necessidade de apuração que precisamos fazer nos demais assuntos. Não repitam mais esses “erros”, que seguem dando aval para que toda sociedade nos desumanize.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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