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cae vasconcelos
27 de fevereiro de 2024

Menstruação, gestação, aborto: corpos transmasculinos também devem ser incluídos nessas conversas

Quando pedimos para usarmos “pessoas que menstruam”, “pessoas que gestam”, “pessoas que abortam”, só queremos ser humanizados

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Arte: Kath Xapi

Quando falamos sobre menstruação, gestação, aborto e outros temas ligados aos corpos com vagina e útero e automaticamente pensarmos em mulheres cis.

Isso é duplamente violento, porque nega às mulheres trans e travestis o direito de serem reconhecidas como mulheres e apaga as vivências de homens trans e de pessoas não-binárias. 

Inclusive, existe um termo específico que vira e mexe gera revolta numa galera específica: pessoas que menstruam. E, infelizmente, a crítica às vezes vem de figuras relevantes, com forte poder de comunicação. Usamos essa expressão para humanizar vivências de corpos transmasculinos, mas falar “pessoas que menstruam”, é lido, de forma bem cruel, como apagamento de mulheres. 

Grandes escritoras, que têm muitos livros vendidos em seus países e pelo mundo afora, como J.K. Rowling, Djamila Ribeiro e Chimamanda Ngozi Adichie, já se pronunciaram (mais de uma vez) contra o uso dessa terminologia. 

Autoras essas que estão em peso na minha estante e que por muitos e muitos anos tiveram um papel fundamental na minha vida de leitor. Mas, mesmo depois de inúmeras tentativas de tentar dialogar, elas se recusam a nos ouvir genuinamente. 

Se falar de menstruação ainda é algo proibido para corpos transmasculinos como os meus, imaginem só se falarmos em gestação ou aborto? Esse último é um desafio para nossa sociedade como um todo. Ainda lutamos para que mulheres cis possam ter acesso ao aborto legal, seguro e longe de qualquer criminalização ou discriminação. 

Mas, ao mesmo tempo que essa luta não avança, vemos as restrições aos nossos direitos se intensificando. Como aconteceu recentemente no Hospital de Vila Nova Cachoeirinha, o principal hospital do bairro em que eu nasci, cresci e morei até 2019. E infelizmente esse retrocesso acontece em diversos lugares do mundo.

Leia mais: Vinte anos de luta pela visibilidade trans e contando…

Queremos ser humanizados 

Quando pedimos para usarmos termos como “pessoas que menstruam”, “pessoas que gestam”, “pessoas que abortam”, só queremos que os corpos transmasculinos sejam humanizados. Apagamento é negar o uso do termo “pessoas”, antes de vivências, que não são exclusivas de mulheres cisgêneras. Se mulheres cis já enfrentam tantas dificuldades e são desumanizadas com frequência, por que enxergar transmasculinos como inimigos em vez de aliarmos forças?

Eu tenho pensado muito sobre gestar uma criança, já que hoje tenho muitos exemplos de homens trans incrivelmente corajosos que, apesar de toda desumanização e invisibilidade, ousaram desafiar o cis-tema e gestar seus filhes. Mas em nenhum dos casos a transfobia deixou de fazer parte desse momento, que deveria ser inesquecível na vida deles.

Para nós, engravidar deveria ser um direito, mas ainda é um ato de muita coragem. Lutamos tanto para sermos vistos como os homens que somos – nenhum pouquinho menos homens do que os homens cis -, e, quando decidimos engravidar, é como se déssemos para sociedade transfóbica uma arma para nos atacar. Não somos vistos como homens nem como pessoas. Percebem como isso é cruel e assustador?

Eu só tive coragem de voltar a cuidar da minha saúde ginecológica no começo desse ano. Encontrar um/a ginecologista inclusivo/a não basta para nos sentirmos seguros.

Podemos sofrer violências na recepção quando apresentamos nossos documentos com os nomes retificados ou os nomes sociais, podemos enfrentar violações nos laboratórios quando formos realizar os exames, e em diversos outros momentos.

A ausência dos cuidados médicos nos deixam mais fragilizados para muitas doenças, como os cânceres. Em 2021, falamos aqui que pessoas trans podem ter câncer de mama assim como qualquer outra pessoa cisgênera. 

Leia mais: Mais do que visibilidade, pessoas trans ainda lutam pelo direito de ser e viver

Marcas de um aborto

Nem consigo imaginar como deve ser ainda mais assustador quando um de nós decide abortar. Não importa o motivo que leve uma pessoa a abortar, sabemos que nunca é uma decisão fácil. Mas sempre vai existir o julgamento da sociedade que fala tanto pela vida, mas nos ceifa diariamente. Existe o julgamento próprio instalado em nós. Se o aborto for por motivos de agressão sexual, então… as violências só se acumulam.

Se um homem trans precisa interromper a gestação, é justo colocarmos sobre ele mais um peso? A transfobia piora tudo. Nos deixa às margens dos poucos direitos que mulheres cis têm em nossa sociedade. Quando pedimos para sermos vistos como pessoas que menstruam/gestam/abortam, queremos minimizar as violências que já sofreremos em uma sociedade feita por e para homens cis.

Vou trazer aqui um bom exemplo de que é muito possível falar de aborto incluindo pessoas trans e, ainda assim, deixar o protagonismo da luta com mulheres cis. Na reta final de 2020, depois de nove tentativas, o aborto legal, seguro e gratuito foi aprovado na Argentina. Apesar de todas as dificuldades da luta travada para isso, aquelas mulheres que encabeçaram o movimento não esqueceram que, além delas, outras pessoas também precisavam ser lembradas.

Veja mais: abortonobrasil.info

O texto aprovado à época, falava que adolescentes, mulheres e “outras identidades com capacidade de gerar” (incluindo homens trans e pessoas não-binárias), a partir dos 16 anos, podiam, dali para frente, interromper a gravidez até a 14ª semana, sem que sejam consideradas criminosas e de maneira gratuita, seja na rede pública ou privada. 

Eu conversei com Ale Mujica, um dos principais nomes transmasculinos na luta pelo aborto na América Latina, na época dessa aprovação. Elu me contou que, como esperado, a discussão para incluir pessoas trans com útero partiu das próprias pessoas trans. Espero que possamos incluir cada vez mais as transmasculinidades em nossos diálogos sobre aborto, seja nos espaços de militância, no jornalismo e nos avanços legislativos que teremos.

Coletivamente, nós temos mais força. Permita-nos fazer parte dessa revolução, que também diz respeito aos nossos corpos.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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