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4 de junho de 2019

Não sei se Neymar cometeu crime de estupro, mas sei que cometeu o de assédio sexual virtual

A cultura que autoriza Neymar a expor conversas e fotos íntimas de uma mulher é a mesma que autoriza a entender o corpo feminino como objeto a seu dispor

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Neymar foi acusado de estupro por modelo e se defendeu divulgando conversas e fotos íntimas em rede social (Foto: Reprodução/Instagram)

O direito da mulher que denuncia um estupro de não ser desacreditada não é contraditório ao direito de Neymar se defender – só na cultura do estupro essas duas garantias não podem coexistir.

Quando dizemos para que “sempre se acredite nas denúncias”, o feminismo não busca impor culpa sem investigação, mas estabelecer uma posição política. Entendendo a realidade de uma sociedade marcada pela cultura do estupro, que desacredita e culpabiliza as vítimas de violência sexual, fortalecer a narrativa da vítima é uma escolha para empoderar a denunciante e reequilibrar, ali no campo jurídico, relações muito desiguais dentro de um sistema que perpetua essas desigualdades.

Isso porque o judiciário não consegue fazer frente à cultura de violação do feminino: sua lógica, seus esquemas e suas engrenagens acabam sempre por colocar a vítima de abuso sexual em posição de defender sua moral enquanto possível de ser atacada – a vítima de estupro precisa, antes que tudo, “provar” sua condição de vítima.

Essa prescrição, contudo, em nenhum momento invalida o direito de Neymar ser preservado como inocente, ao menos enquanto ocupa apenas a figura de acusado. Esse direito lhe foi tirado não pela suposta vítima, mas por uma mídia predatória, cuja lógica imbecil de confundir liberdade de expressão com irresponsabilidade social é a verdadeira fonte de extorsão nessa história toda.

A falsa imagem do agressor

Claro que quem sai perdendo é sempre a luta por uma sociedade menos primitiva, já que a necropolítica* dos likes só se sustenta na perversidade da lógica da cultura estupro.

Primeiro, cria-se uma imagem, pelas matérias que são publicadas, muito perigosa para as mulheres – a de que o estuprador é um homem desconhecido, de feições “marginais”, que toma uma desconhecida de assalto no meio de uma rua escura e a violenta.

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O maníaco do parque, o estuprador do busão, e lá vamos nós criar falsas imagens, já que sabemos, por estatísticas, que não é essa a realidade do estupro – na maioria esmagadora dos casos cometida por alguém conhecido da vítima, cuja crueldade está situada exatamente na linha tênue entre o consentimento em ter relações sexuais e os termos, ritmo e situação em que isso irá acontecer.

Mas não acaba por aí.

Além do mito do estuprador desconhecido, o reforço midiático da cultura do estupro também transforma a vítima em criminosa, ao buscar explicar o fato de ter a mulher sido violentada por um homem de “sua confiança” ao dizer que ela se “ofereceu”, que ela “estava ali pra isso” – ou seja, que o único motivo para se ver um “homem de bem” transformado em agressor é a malícia da vítima, que corrompeu a masculinidade sagrada.

Culpada a Eva, a mulher só pode preservar sua dignidade se sua postura for a de uma fêmea recatada, que não manifesta interesse sexual, que pode apenas agir como um objeto a ser “conquistado” pelo macho. Preservar o corpo como fonte apenas do próprio desejo não é um direito na sociedade do estupro.

Exposição reforça o estigma da vítima

Dito isso, insisto, para não ficar dúvida, que o direito de Neymar se defender é uma das bases de nossa democracia. Mas é preciso que isso seja feito sem reforçar estruturas violentas e desiguais – quer fundada na desigualdade de gênero, quer fundada em sua esmagadora força de propagar discursos.

A dificuldade de comprovar ausência de consentimento em uma relação que aconteceu sem testemunhas já está a favor do jogador, ele não precisa – e não pode – mobilizar as bases da misoginia social e de uma fraternidade masculina adoecida para promover sua defesa.

Leia mais: “São homens comuns”, diz pesquisadora indiana que entrevistou 100 estupradores

A exposição das imagens e conversas com a modelo, enquanto ele próprio repetia sem parar sua firmeza de caráter e idoneidade, não é produção de provas a seu favor – aquilo ali não prova que aconteceu nem que não aconteceu – mas sim um reforço de uma cultura que estigmatiza a vítima de abuso sexual como alguém cuja moral duvidosa impede que seja caracterizada mesmo como passível de ser vitimada por esse tipo de violência.

Não sei se Neymar cometeu um crime de estupro, e realmente gostaria que isso fosse investigado com a maior preservação das partes possível.

Mas certamente Neymar cometeu um crime de assédio sexual virtual, certamente fruto da cultura do estupro: o lugar de onde tira autorização para expor conversas e fotos íntimas de uma mulher para uma rede de mais de 11 milhões de seguidores vem do mesmo lugar que o autoriza a entender o corpo feminino como objeto a seu dispor.

*Necropolítica é um conceito proposto pelo pensador camaronês Achille Mbembe e significa a gestão de territórios de degradação, desintegração social e morte.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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