Em meio a um aumento preocupante dos casos de violência doméstica em São Paulo, a resposta da prefeitura às mulheres não poderia ser mais contraditória: sob o argumento de corte de custos, a gestão de Ricardo Nunes (MDB) ameaça privatizar e sucatear os três mais importantes Centros de Referência da Mulher (CRM) da cidade – a Casa Eliane de Grammont, o CRM Brasilândia e o CRM do Capão Redondo.
Em julho deste ano, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) lançou um chamamento público para contratar uma entidade privada para a gestão das casas. Além deo poder público estar abrindo mão de atuar diretamente em um serviço essencial sem apresentar qualquer estudo técnico-orçamentário que justifique, o processo se deu de forma extremamente autoritária, sem consulta à população, ao Conselho de Política para Mulheres da cidade, ou aos movimentos sociais que lutam pelos equipamentos públicos há décadas.
Não bastasse isso, como resultado do chamamento foi convocada para assumir as Casas uma entidade chamada APOIO – Associação de Auxílio Mútuo da Região Leste, que gere equipamentos municipais voltados para a população em situação de rua, mas que não tem qualquer experiência relativa a atendimento de mulheres vítimas de violência.
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Corte é projeto político
Desde a gestão Dória (PSDB) à frente da Prefeitura de São Paulo, o orçamento voltado às políticas para mulheres vem sendo estrangulado progressivamente. Assim que assumiu, Dória fechou a Secretaria de Política para Mulheres, acoplando a pasta à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania e, portanto, restringindo sua independência orçamentária. Ato contínuo, encerrou as atividades do “Ônibus Lilás”, e passou a restringir as verbas que seriam destinadas às casas de acolhimento e cidadania da mulher. Agora, na gestão Ricardo Nunes (MDB), o desmonte se aprofunda.
O sistemático sucateamento dos equipamentos da rede de enfrentamento foi denunciado pela CPI da Violência Doméstica e a CPI de Vulnerabilidades, realizada pela Câmara Municipal de São Paulo, em 2017. A CPI apurou a impossibilidade de o serviço seguir funcionando plenamente com o desmonte do quadro funcional, visto que novos concursos públicos não estavam sendo realizados para substituir as funcionárias que se aposentaram, tampouco havia esforços na expansão do atendimento.
Vale dizer que o fundo municipal de direito das mulheres está disponível para esse tipo de política e conta com orçamento significativo. Mas está sob disputa política entre as pastas e parlamentares, e segue sem ser acionado por parte do poder público.
A decisão de corte de verbas destinada à mulheres nem de longe reflete uma alocação racional de recursos públicos. Os dados mostram: nos últimos 3 anos, o índice de violência doméstica em São Paulo aumentou em 64%, segundo o Mapa da Desigualdade. Durante a pandemia de covid-19, o Estado de São Paulo teve um aumento de 44% de denúncias de violência contra a mulher, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A única atuação razoável do poder público seria, justamente, a oposta adotada pela prefeitura: fortalecer os equipamentos públicos de atendimento às vítimas.
O que explica a resposta municipal, nesse contexto, não é apenas a falta de prioridade à determinado serviço público, mas um projeto neoliberal que visa o aprofundamento de desigualdades de gênero, raça e classe. Novamente, os dados expõem: conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 60% das mulheres assassinadas no país são negras.
Numa cidade onde mulheres brancas de bairros nobres têm acesso à assessoria e atendimento médicos privados, o desmantelamento de políticas de gênero afeta diretamente a vida de mulheres trabalhadoras, negras e periféricas. E essas são daquelas as principais beneficiárias dos equipamentos públicos de atendimento à vítimas de violências.
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Privatização não é saída
Os Centros de Referência da Mulher (CRM) são equipamentos públicos centrais para a rede de enfrentamento à violência, oferecendo serviços de atendimento jurídico e psicossocial. O primeiro CRM do país foi a Casa Eliane de Grammont, criada em 1990 após intensa luta dos movimentos de mulheres, batizada em homenagem à cantora vítima de feminicídio, que mobilizou a agenda pública na década de 1980.
Esse modelo bem sucedido de política pública foi disseminado pelo país e garante o acesso de mulheres em situação de violência a serviços com alta sensibilidade para questões de gênero. As servidoras desses centros são altamente capacitadas e detém uma bagagem profissional que lhes confere autoridade no tema, sendo por muito tempo, inclusive, responsáveis pela capacitação de outros funcionários da prefeitura.
O sucesso dessas políticas, além de um forte investimento conjunto entre as esferas federal, estadual e municipal, advém justamente de sua condição de trabalho em rede. A atuação integrada das Casas de Referência, abrigamentos, das delegacias da mulher e do judiciário são fundamentais para que seja aplicado um protocolo único e bem pensado de atendimento à violência contra a mulher. Isso permite que a experiência compartilhada vá melhorando os serviços. É ainda uma garantia contra a revitimização da mulher no sistema público: o que acontece quando ela passa por diversos equipamentos desconectados, que a obrigam a recontar e reviver a experiência traumática, muitas vezes nas mãos de profissionais não especializados.
É por isso que a privatização dos equipamentos, que coloca cada unidade nas mãos de um gestor diferente, é prejudicial ao modelo de atendimento, e tem como consequência a precarização. Até hoje, nenhum estudo comprovou a melhoria do serviço por meio de privatização, sequer estando demonstrado o aumento da eficiência ou do número de atendimentos. Não existe, sob o ponto de vista da qualidade do sistema, qualquer fundamentação positiva para a privatizar.
Não podemos deixar de mencionar que a terceirização também é inimiga das trabalhadoras que, sem a proteção da contratação pública, são mais precarizadas, recebendo baixos salários e ficando sobrecarregadas, o que afeta tanto a vida das servidoras quanto das atendidas.

Movimento de mulheres
Os mandatos feministas da Câmara Municipal de São Paulo – Juliana Cardoso (PT), Bancada Feminista (PSOL) e Quilombo Periférico (PSOL) – pressionaram pela realização de uma audiência pública, que se deu em 14 de setembro de 2021. Apesar da presença de representantes de movimentos sociais, militantes, servidoras e representantes de trabalhadoras terceirizadas, a prefeitura não se dignou a enviar nenhum representante.
Em 21 de setembro, foi realizada uma manifestação na frente da SMDHC. Os mandatos feministas, a Marcha Mundial de Mulheres, o grupo Mulheres em Movimento e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) protestaram com o intuito de dialogar com representantes da secretaria. Claudia Carletto, secretária responsável pela pasta, não compareceu, e tampouco respondeu às convocações realizadas pelas instituições e movimentos sociais, seja para explicar o processo que vem sendo realizado ou fornecer dados específicos do atendimento de mulheres nesse serviço – em flagrante violação dos princípios de gestão democrática e transparência.
Apesar de ter como alvo três CRM`s na capital paulista, o sucateamento dos equipamentos públicos voltados às mulheres é uma realidade perversa que vem se alastrando nas mãos das gestões neoliberais à frente dos municípios, estados, e do governo federal. Sabendo que se trata de um projeto que não vai parar aí, o movimento de mulheres segue mobilizado, demandando a suspensão do processo de privatização, a realização de um estudo técnico-orçamentário sobre a situação das casas e mais transparência e diálogo com a sociedade civil.