O caso do julgamento da denúncia de estupro de Mari Ferrer contra Andre Aranha nos traz novamente o complicado paradoxo: como equilibrar a balança entre as garantias penais aos acusados e a produção e validação das provas em casos de violência sexual – quando, em geral, as únicas testemunhas são os envolvidos, um de cada lado do processo.
A matéria do Intercept Brasil criou um certo embaraço ao enunciar que André Aranha teria sido absolvido pela inexistência do tipo “estupro culposo”. Mas não foi essa a razão da absolvição. Esse foi argumento trazido pelo Ministério Público de Santa Catarina.
Em suas alegações finais, o procurador Thiago Carriço de Oliveira argumentou que o acusado não teria praticado “estupro doloso”, por não ter a “intenção de estuprar”. Segundo o procurador, como Andre Aranha não tinha como saber da recusa da vítima ou de sua vulnerabilidade, deveria ser absolvido por sua conduta se tratar de “erro de tipo”: ou seja, o acusado não sabia que estava estuprando.
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A sentença, por outro lado, foi expressa ao afastar a condenação por ausência de provas de que a vítima estivesse com sua capacidade de discernimento comprometida.
Esses foram os documentos do processo que vieram a público, e que causaram uma enxurrada de questionamentos: as provas que estão no processo são suficientes para condenar Andre Aranha? Não sei. Isso nos impede de debater com o judiciário lidou com a questão? Jamais.
Se as garantias dos acusados penalmente não podem ser jogadas fora pela comoção pública causada por um caso angustiante, sob pena de reforçar o punitivismo pela pressão midiática, também o direito da sociedade e dos movimentos feministas de questionar a condução do caso pelo judiciário não pode ser abafado por uma suposta discussão “técnica”, que não estaria ao alcace dos não iniciados na controversa ciência jurídica.
Isso porque a técnica que orienta a lógica do direito não é neutra. As leis que regulam direitos e o processo judicial não estão imunes às contradições da sociedade que as fizeram. Longe disso. As leis de uma sociedade machista, racista e elitista são marcadas, sem dúvida, por desvios machistas, racistas e elitistas.
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Exemplo fácil: hoje, dos(as) 94 desembargadores(as) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, apenas 7 são mulheres. Não sei quantos são negros e negras, mas arrisco dizer que o dado não é mais animador. Sem contar que o processo seletivo para ingresso na carreira da magistratura exige necessariamente que o candidato tenha estrutura e recursos financeiros disponíveis para poder se dedicar ao estudo. Além da “boa aparência”, necessária para passar nas provas orais.
Desqualificar a revolta e o debate público quanto à condução do julgamento por um suposto “erro de leitura” dos autos não é apenas um argumento equivocado – já que o MP efetivamente defendeu essa tese, apesar de não usar o termo – como também expressa a defesa de um tecnicismo que só serve para elitizar ainda mais o direito, que só serve para afastar as possibilidades de sua transformação por meio do debate democrático da sociedade.Não existe equívoco, jurídico ou democrático, na cobrança do poder público quanto à tese esdrúxula apresentada pelo MP. É direito da população, das mulheres, dos movimentos, questionar: a inexistência do crime de “estupro culposo” no Código Penal autoriza a não punição do acusado, ou falar em “estupro culposo” é uma impossibilidade lógica? No bom português: é possível estuprar sem ter a intenção de estuprar?
Se o judiciário não sabe, o movimento feminista, que há décadas estuda e discute o tema, responde: o consentimento para relações sexuais deve ser expresso. Ou seja, se o indivíduo não sabe se a vítima não está consentindo, pela lógica, ele também não tem como saber se ela está consentindo.
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O movimento feminista também repete incessantemente: não é não! Porque? Por que muitos homens resistem a entender a recusa de uma mulher, e forçam a barra mesmo quando estão sendo repelidos. Seria o “estupro culposo” uma desculpa para absolver homens que “não entenderam” a negativa? “Ah, me desculpe excelência, eu não tinha entendido que ela não queria”.
O tema é espinhoso. Valorar a subjetividade em casos de violência sexual é difícil. O juiz, o promotor, advogado, não são sujeitos sem crenças, valores, sentimentos. A solução? Abandonar a crença de que os juízes são imparciais, e recorrer à ciência.
Muitos estudos com mulheres vítimas de violência têm demonstrado que uma reação comum de vítimas de estupro, durante o cometimento o delito, é a paralisia. Longe da “vítima perfeita”, idealizada pelos julgadores – uma mulher que se debate com todas as forças – a ciência prova que é mais comum a reação instintiva de imobilidade, uma resposta psíquica serve que para evitar agravamento da violência, ou mesmo para evitar “maior excitação” por parte do agressor. Seria a modalidade “estupro culposo” uma punição contra um mecanismo de sobrevivência incontornável numa situação de violência?
É por isso que, na busca por justiça em uma denúncia de estupro, o centro não pode ser o agressor, mas a vítima. O que interessa para configurar o crime de estupro, é se ela estava ou não consentindo com o ato expressamente. É essa a prova que se procura – uma prova difícil que, no caso de Mari Ferrer, se tornou impossível, já que os instrumentos de desqualificação da vítima e de apelos morais à fatos de sua vida pessoal totalmente alheios aos temas discutidos no processo foram usados livremente pela “técnica de defesa”.
Reequilibrar essa balança demanda reconhecer que o Estado e suas instituições estão permeados pela cultura do estupro. Reconhecer que uma discussão sobre estupro, para ser verdadeiramente técnica, demanda muito mais do que seguir os tipos frios e questionáveis do direito. Requer abrir e democratizar o judiciário, para que ele desenvolva uma visão menos estigmatizada da mulher vítima de violência, absorvendo o que vem sendo produzido pela ciência, e o que vêm dizendo os movimentos que se dedicam a disputar um direito que seja verdadeiramente sensível à realidade da vida das mulheres.