
No fim dos anos 1960, Vovó contou pra sua filha de 11 anos: “eu tô grávida, mas a gente não tem como criar mais uma criança”. A filha, que ansiava por uma irmãzinha, entendeu que essa não era uma possibilidade para sua família. A decisão de Vovó de fazer um aborto foi de quem já era mãe, conhecia de perto a maternidade e os impactos de mais uma criança na vida e nas contas da casa.
Naquela época, as brasileiras ainda não haviam descoberto um medicamento para o estômago que também servia para lidar com esse tipo de situação. O misoprostol – ou Cytotec, um de seus nomes comerciais – só seria adotado como opção para lidar com uma gravidez indesejada quase duas décadas depois.
Mas Vovó e Vovô tinham uma decisão tomada: para cuidar dos filhos que já tinham, não podiam acrescentar mais um à família. Vovó era secretária do mesmo hospital em que ele trabalhava. Possivelmente foi algum colega de trabalho que possibilitou a interrupção da gravidez em segurança. Dois dias de repouso, e depois esse assunto nunca mais voltou à tona com a filha.
O desfecho poderia ter sido outro
Vovó foi uma dentre tantas brasileiras que, mesmo com o perigo da clandestinidade, tomou seu destino nas mãos para garantir que seus planos de vida pertenciam a ela. Mas não é o que a lei penal brasileira afirma, até hoje. Se uma denúncia tivesse rompido a discrição com que Vovó efetivou sua escolha, a vida de seus filhos poderia ter sido completamente distinta, com a mãe na cadeia. Ou, se não conhecesse profissionais dispostos a cuidar, talvez a própria vida dela estivesse em risco com um procedimento inseguro.
Eu não conheci Vovó por uma fatalidade que tirou sua vida décadas antes que minha própria mãe decidisse viver a maternidade. Mas me orgulho de sua história e me emociono com as várias miúdas lembranças que me são contadas e vão compondo essa imagem da mulher que ela foi. Histórias de aborto muitas vezes são assim: transmitidas oralmente pelas gerações de meninas e mulheres das famílias, compartilhadas com amigas e companheiras. Outras tantas, vividas na solidão do silêncio.
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O que querem os deputados
Hoje, deputados, que nada sabem sobre gestar, parir e criar um filho, querem mandar para a cadeia, por até 20 anos, quem ousar decidir se, quando, como ou com quem quer ter filhos. Querem mandar nos corpos de meninas, mulheres e pessoas que gestam. Querem levar à prisão profissionais de saúde que cumpram com o seu dever ético de cuidar.
Mas precisamos enfrentar o estigma que rodeia esse tema. Falar em alto e bom som sobre as histórias das tantas (1 em cada 7) brasileiras que já fizeram um aborto. Pessoas que decidiram, independente do motivo, que aquela gestação não iria adiante. A discussão é urgente, a descriminalização também. Pela vida de todas nós.