“Pelo fim da cultura do estupro”, dizem os avatares nos perfis de milhares de mulheres brasileiras nos últimos dias. Eles surgiram como resposta à denúncia de uma jovem de 16 anos estuprada por 33 homens no Rio de Janeiro. E também, como resposta, surgiram reportagens e dezenas de discussões ao redor do termo “cultura do estupro”. Mas se por um lado o conceito ganhou o mundo, a reação a ele também cresceu. “Se existe uma cultura, estamos então inocentando os culpados, alegando que são mero produto dessa sociedade e não criminosos?” ou ainda “isso significaria que todo homem é um estuprador potencial e isso ofende todos os homens que consideram esse crime uma atrocidade”, são algumas das objeções mais frequentes à ideia, mas uma análise calma do conceito vai mostrar que não são verdadeiras.
Para começar, vamos relembrar o que é a cultura do estupro. Trata-se do conjunto de normas, valores e práticas sociais que colocam a mulher como objeto e tornam naturais violências sexuais. “Essa cultura desencadeia reações de culpabilização da mulher, conivência, omissão e descaso da sociedade e, consequentemente, do Estado nos casos de estupro”, explica Márcia Tavares, professora de Serviço Social da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Coordenadora do de Pós- Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo.
Ou seja, é uma cultura que diz aos homens que o corpo da mulher é seu por direito e, assim sendo, podem fazer o que bem quiserem com ele, inclusive sexo quando ela não está com vontade.
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Essa tese é reforçada pela ciência. “Toda a literatura sobre o assunto mostra que a grande maioria dos estupradores não tem uma doença ou patologia. O estuprador é o homem comum, que comete a violência, mas sem reconhecer isso como violência”, afirma a psicóloga Arielle Sagrillo. Em seu doutorado, pela Universidade de Kent, na Inglaterra, ela está pesquisando como a cultura fornece os elementos para que os homens possam cometer essas violências sem se sentirem moralmente culpados.
Oras, então, se o estuprador é o resultado da nossa cultura, quer dizer que a culpa não é dele pelo que fez e sim da sociedade, não?
Não.
Como explica a Promotora de Justiça e autora do livro “Lei Maria da Penha, processo penal no caminho da efetividade”, Valéria Scarance, “os padrões naturalizados não excluem a capacidade de decidir e nem reduzem o discernimento do indivíduo”. A cultura pode até ensinar para os homens que é ok estuprar, mas ainda assim cabe a cada um a decisão sobre seus atos e, da mesma forma, a punição prevista em lei por seus crimes.
Outra crítica comum à ideia de cultura de estupro é a de que ela atrapalha a tomada de ações efetivas para prevenir que os abusos sexuais aconteçam. Mas como todas as especialistas entrevistadas responderam: essa crítica não passa de uma má compreensão da ideia.
“A raiz do estupro está na concepção de que a mulher pertence ao homem e não pode dizer não. Como podemos desnaturalizar essa concepção incorporada ao longo de séculos?”, pergunta Valéria. Não adianta ensinar a mulher a se defender ou apenas punir os estupradores, pois novos surgirão. “A educação é a principal estratégia para se combater o problema a longo prazo. Estimulando os alunos a refletirem sobre o que é masculino, o que é feminino, o que é natural e o que é ensinado sobre gênero”. Ela ainda reforça que isso deve existir junto a uma resposta rápida e efetiva do Estado no atendimento e suporte às vítimas de estupro e de punição aos estupradores.
Mas eu não sou um estuprador potencial!
Por fim, a maior reação ao conceito da cultura de estupro tem sido dos homens que se ofendem com a ideia de que a sociedade forma todos os homens como estupradores em potencial. Parece mesmo injusto ser colocado no mesmo balaio destes “monstros criminosos”. Afinal, quem em sã consciência acharia que o estupro não é um horror?
Infelizmente, muitos homens ainda nem entendem que certas violências são estupro. Basta ver quantas pessoas estão justificando o ocorrido no Rio dizendo que a menina bebeu porque quis ou tinha topado transar com os caras – aqui ressaltamos que o simples fato de ela estar desacordada enquanto homens tocavam seu corpo configura estupro, sim.
Então, antes de se ofender, todo homem deve entender que onde acaba o consentimento, começa o estupro. E, a partir disso, voltamos ao que foi dito no início deste texto: a cultura do estupro não exclui o discernimento e o poder de escolha de cada um. Se você pode ser um estuprador, uma vez que vive inserido numa cultura de estupro, respeite a escolha das mulheres e garanta assim que jamais será um estuprador. Em suma, não se comporte como se a carapuça servisse pra você, lute para que ela jamais lhe sirva.