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4 de dezembro de 2023

A crise climática também é uma questão feminista

Mulheres são as mais afetadas pelo aquecimento global e estão na linha de frente para conter os estragos causados pelo atual modelo de produção

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mulheres são mais afetadas pelo clima
Arte: Kath Xapi

A passagem de Taylor Swift pelo Brasil, em meio a uma onda de calor, começou marcada por uma tragédia: a morte de Ana Clara Benevides. Aos 23 anos, a jovem mulher negra saiu do Mato Grosso do Sul para o Rio de Janeiro para realizar o sonho de ver a diva pop ao vivo. Morreu logo no começo da apresentação, num dia em que a sensação térmica dentro do estádio era de 60º. A organização do evento havia proibido a entrada de garrafas d’água e não tomou medidas para refrescar a multidão.

O verão ainda não chegou e já estamos sentindo na pele os efeitos do aumento da temperatura, muito  acima dos anos anteriores. Graças ao efeito estufa e ao El Niño, 2023 já é considerado pelos cientistas o ano mais quente em 125 mil anos. 

Mais do que a necessidade de reforçar a proteção solar e a hidratação, o aumento da temperatura nos deixa em estado de alerta para a possibilidade de desastres naturais e de óbitos que podem ocorrer em razão do clima, como o caso de Ana Clara Benevides, 23. A jovem faleceu durante um show de Taylor Swift, num dia em que a sensação térmica dentro do estádio era de 60º. A organização do evento havia proibido a entrada de garrafas d’água e não tomou medidas para refrescar a multidão.

O triste episódio é uma amostra de como opera o aquecimento global:  mulheres racializadas de países pobres são as pessoas mais vulneráveis aos efeitos do caos climático. Em contrapartida, milionários de países ricos estão entre os maiores emissores de gás carbônico (CO₂), responsável pelo aumento da temperatura no planeta. Taylor Swift é a celebridade que mais emite CO₂ no mundo.  

A partir deste caso podemos enumerar algumas questões que podem passar despercebidas em meio ao noticiário sobre o clima, mas que são fundamentais para pensarmos sua relação com as questões de gênero. São elas: a glorificação de um modo de vida insustentável e as ciladas apresentadas como potenciais soluções. 

Racismo ambiental

A primeira pessoa a identificar que o gás carbônico se aquecia sob o sol e isso poderia influenciar no clima da Terra foi uma mulher: Eunice Foote (1819-1888), cientista amadora  e feminista, de Seneca Falls (EUA). Suas descobertas foram publicadas em alguns periódicos locais, mas quem acabou sendo reconhecido pela descoberta do efeito estufa foi um homem, o irlandês John Tyndall. 

Desde que as descobertas de Eunice foram publicadas, o aquecimento global cresceu em escala exponencial, fruto do modo de produção capitalista – especialmente via desmatamento, emissão de poluentes industriais e queima de combustíveis fósseis (petróleo e derivados). 

Países pobres, os que menos consomem bens industrializados, são os mais afetados pelas catástrofes ambientais decorrentes da crise do clima, como enchentes, secas, vendavais, tornados, deslizamentos de terra. Nas populações atingidas, mulheres e crianças são as mais afetadas, já que costuma recair sobre elas a responsabilidade de cuidar do lar e das pessoas e garantir a alimentação das famílias. 

Medo, morte e abandono rondam defensoras do meio ambiente

Em situações em que a subsistência se torna impossível para famílias de pequenos agricultores e pescadores, mulheres e crianças costumam permanecer no local enquanto homens saem em busca de trabalho. Isso agrava os índices de evasão escolar, insegurança alimentar e as expõe aos riscos de permanecer em áreas contaminadas ou sujeitas a desastres naturais. 

Em mulheres que menstruam, ovulam, entram na menopausa, na TPM e engravidam, as sensações térmicas alcançam níveis jamais sentidos por homens, mas elas seguem sendo cobradas da mesma maneira pelo mercado, sem qualquer adaptação de trabalhos ou acolhimentos.

No norte global, mulheres pertencentes a grupos étnicos minoritários são as mais vulneráveis aos efeitos do que hoje se chama de racismo ambiental – quando as consequências do efeito estufa incidem com maior violência sobre comunidades racializadas. Foi assim em Nova Orleans, quando o furacão Katrina devastou a cidade, matando mais de mil pessoas e deixando inúmeros desabrigados. 

Ecofeminismo em ação

Na década de 1970, a francesa Françoise d’Eaubonne cunhou o termo ecofeminismo para enfatizar como a luta pelos direitos das mulheres está conectada com a preservação ambiental. Duas décadas mais tarde, no livro “Ecofeminismo” (1993), Maria Miès e Vandana Shiva explicam como o patriarcado capitalista é responsável pela destruição do planeta, baseando-se no controle do Norte sobre o Sul global, dos recursos naturais e das pessoas, sobretudo dos homens sobre as mulheres. 

Leia mais: Exploração e violações: a rotina das mulheres na produção de frutas

Sendo as mais afetadas, as mulheres estão na linha de frente das lutas ambientais em todo o mundo, contra a privatização da água e das sementes, a favor da biodiversidade e da agricultura sustentável, para barrar a construção de hidrelétricas, projetos de mineração, entre outros.

No nosso país, elas estão presentes também nos movimentos de mulheres indígenas pela demarcação de terras, contra a expansão do desmatamento e do garimpo. Além dos impactos das mudanças climáticas, essas ativistas sofrem violências de gênero, como intimidação e estupros.

Sereias coloniais

Embora sejam mais afetadas, mulheres são sub-representadas nas delegações dos países e nas esferas decisórias sobre a política climática global. Na COP 26, em 2021, elas eram 37% das delegações e tiveram apenas 29% do tempo de fala. Por causa dessa disparidade, há esforços por parte de órgãos vinculados às Nações Unidas para ampliar a inclusão e discussão da agenda de gênero nas conferências. 

O problema é que a crise climática não é questão de representatividade, e sim de um modelo produtivo sustentável e questionar a lógica colonial que produziu essa crise. Gastar mais tempo em adoções de medidas para alcançar paridade de gênero – em espaços que não têm o menor interesse em romper com o desenvolvimentismo -é uma política que acaba postergando a adoção de medidas de maior impacto.

Leia mais: Mulheres protagonizaram acordo sobre o clima

Sucumbir ao canto das sereias coloniais de que os problemas das mulheres atingidas pelos efeitos do aquecimento global pode ser resolvido com representatividade requer ignorar o histórico de mulheres que, quando em cargos públicos, longe de combater, acabaram reforçando esse modelo capitalista. 

O Código Florestal brasileiro e a hidrelétrica de Belo Monte no Pará, aprovados durante a gestão da presidenta Dilma Rousseff, com atuação de parlamentares defensoras do agro, como Kátia Abreu e Tereza Cristina, são apenas alguns exemplos recentes de que não se trata de algo inerente ao gênero. 

Leia mais: O avanço do garimpo é a morte das mulheres indígenas

Sustentabilidade e justiça social

Diante dessas ciladas discursivas, Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, autoras de “Feminismo para os 99%” consideram que os movimentos que não separam a preservação do meio ambiente da à luta das mulheres são a alternativa anticorporativa e anticapitalista contra o aquecimento global. 

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No caso do Brasil, esses movimentos são aqueles capitaneados por mulheres indígenas, ribeirinhas, caiçaras, quilombolas e camponesas. Ao mesmo tempo em que se engajam na defesa do meio ambiente e na luta pela terra, elas são ativas na defesa dos direitos humanos e pelo bem viver. Esses grupos são possibilidade de encontro nas mobilizações por justiça social e sustentabilidade. 

Como sintetiza Françoise Vergès, autora de “Feminismo Decolonial”, não se trata de melhorar o sistema vigente, mas de combater todas as formas de opressão, dando continuidade à emancipação das mulheres do Sul global.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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