Violência, preconceito, direitos trabalhistas… São tantas as fontes de preocupação para os brasileiros que se opuseram à eleição de Jair Bolsonaro nos últimos meses, que falar de sexo parece algo supérfluo e desnecessário. Até para mim pareceu, tanto que demos um tempo nessa coluna no período entre o primeiro e o segundo turno das Eleições. Mas agora que o resultado está na mesa, precisamos ter claro que falar de sexo é resistência ao retrocesso.
Não é sobre transar mais ou menos, mas sim sobre não deixar que um discurso de desinformação vença, trazendo enormes prejuízos para o nosso país. Quer ver?
Gravidez na adolescência
Durante sua campanha e até mesmo antes dela, o presidente eleito pelo Brasil reiterou sua posição contrária à “ideologia de gênero nas escolas”. Primeiro é importante saber que essa ideologia não existe (essa matéria explica isso). Segundo é saber que o termo se refere a várias coisas, sendo uma delas educação sexual.
Mas isso é realmente importante?
Não sou eu que estou dizendo isso, é a ONU. “A taxa mundial de gravidez adolescente é estimada em 46 nascimentos para cada 1 mil meninas entre 15 e 19 anos, enquanto a taxa na América Latina e no Caribe é de 65,5 nascimentos, superada apenas pela África Subsaariana. No Brasil, a taxa é de 68,4 nascimentos para cada 1 mil adolescentes”, diz o texto de apresentação do relatório sobre o tema de 2018.
A gravidez na adolescência é considerada uma questão de saúde pública e um impasse para o desenvolvimento social. Afinal, meninas grávidas podem largar estudos e deixam de ter uma carreira profissional (e a liberdade financeira) que poderiam ter.
E um dos pontos indicados pela própria ONU para combater esse problema é a educação sexual.
Afinal, educação sexual não é “aula de sexo”. Nem estímulo para que as crianças comecem a transar mais cedo. Muito pelo contrário.
É sobre ensinar para os jovens como a sexualidade funciona e as consequências que ela pode trazer.
A lógica é a seguinte: conversando ou não sobre sexo com seu filho, ele vai transar em algum momento. Melhor que faça isso de maneira consciente, sabendo que gravidez pode acontecer e doenças podem ser transmitidas, e tomando cuidado para prevenir.
61 mil estupros em 2017
O número de estupros no país cresceu 10% em 2017, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E o pior é que a maior parte dos crimes sexuais acontece dentro de casa.
Então, quando alguém diz que educação sexual é “legalizar a pedofilia”, pense bem. Na verdade, é o contrário. O abuso de crianças já acontece e é preciso combatê-lo.
Uma das formas de fazer isso é ensinando às crianças a reconhecer o abuso e a denunciá-lo. Essa á uma das frentes que a educação sexual procura atacar.
Além disso, nossa cultura tem toda uma lógica de construção da sexualidade baseada no prazer do homem. Se não se fala de sexo em casa, nem na escola, a pornografia resta como alternativa de educação sexual.
E, infelizmente, ela ainda é majoritariamente feita por homens, em uma lógica machista. Assim, meninos são ensinados que seus instintos sexuais são incontroláveis, que o “não” de uma mulher é um joguinho que quer dizer “sim”. Enquanto meninas são ensinadas a “não provocar” os homens.
Mais uma vez, a educação tem um papel importante para mudar esse cenário. Os meninos precisam aprender o que é consentimento, assim como meninas devem ser ensinadas a ser donas de seus próprios corpos e a dizer “não” desde cedo.
Bolsonaro e o tratamento para HIV
No Brasil, pessoas portadoras do vírus HIV são atendidas pela rede pública de saúde, recebendo os coquetéis do tratamento gratuitamente. Esse programa existe desde 1996 e é referência no mundo todo. E graças a ele, entre 2014 e 2016, as mortes causadas pela aids caíram 7,2%.
No entanto, nosso presidente eleito já chegou a dizer em uma entrevista ao CQC que acha que o governo não deve fornecer tratamento para aids. “Fica na vida mundana, depois vai querer cobrar do poder público um tratamento que é caro pra essa área”, disse ele.
Agora imagine somar isso num combo com a ausência da educação sexual?
Jovens que não têm informação sobre prevenção e que têm vergonha de comprar camisinha, fazendo sexo desprotegido, em um país que não vai mais oferecer tratamento para o HIV. Isso pode dar certo?
Ainda não sabemos quais políticas vão se tornar realidade ou deixar de existir. Mas o discurso já existe e ganha força. Então é preciso encarar isso de frente.
Se a educação sexual não vai estar nas escolas, precisamos encontrar outras formas de fazer com que ela aconteça. Temos de seguir falando sobre sexo, sobre prevenção de doenças e gravidez. Temos que seguir ensinando os meninos sobre consentimento. E as meninas sobre seus corpos e seu prazer.
Sexo e poder
Nós, mulheres, temos também que seguir firmes no movimento de nos apropriarmos de nossas sexualidades. Porque o sexo sempre foi uma ferramenta de controle e de poder sobre os nossos corpos. E não podemos deixar que o medo tire de nós a capacidade de sentir prazer, de seguir conhecendo e amando nossos corpos e, sim, gozando.
O discurso conservador que tem ganhado força é contrário a sermos donas de nós mesmas, conscientes de que também temos direito a gozar, de que sexo não é uma obrigação do matrimônio, de que agradar ou satisfazer o homem não é nosso dever. Porque toda essa consciência nos permite sair de relações abusivas, romper com padrões de abuso e buscar o que realmente queremos. Como disse Oscar Wilde: “tudo nesse mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder”.
Fora que, não podemos deixar esse senhor tirar nosso tesão, né?
Edição: Coluna atualizada às 11h39 do dia 31/10 para inclusão da última versão revisada dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.