“Ele também é contra a ideologia de gênero, que quer que aceitemos que ninguém nasce homem ou mulher”, escreveu uma integrante do grupo “Mulheres unidas a favor de Bolsonaro”, no Facebook. “O Haddad e o vice dele, Jean Willys [a vice de Fernando Haddad é, na verdade, Manuela D’Ávila], essa corja aí, disse que vai ensinar as crianças a ideologia de gênero, elas quem vão escolher o sexo e os pais não vão poder se meter nisso”, disse outra integrante do grupo.
A disputa presidencial trouxe à tona a polêmica ao redor do que é chamado “ideologia de gênero”. Apesar de não citar o tema em seu plano de governo, o candidato Jair Bolsonaro já se posicionou diversas vezes contra tal ideologia e o assunto é frequentemente citado por seus eleitores entre os motivos pela escolha do voto.
Mas o que exatamente quer dizer “ideologia de gênero”? O que isso significa na prática para as crianças e famílias?
Estudos de gênero
No Brasil, fala-se em ideologia de gênero principalmente nos debates ligados à educação. “Se chama erroneamente de ‘ideologia de gênero’ qualquer iniciativa que busque debater questões de ordem de gênero e orientação sexual em escolas, como iniciativas que visam combater as discriminações de gênero ou orientar e conscientizar sobre educação sexual”, explica Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
Nas redes sociais, no entanto, parece haver uma confusão em relação ao que seria o uso dessa ideologia na educação, indo de “aulas de sexo na escola” até o tão citado “kit gay”.
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Mas nunca houve, por parte de nenhum partido, propostas de incluir aulas de sexo ou um kit gay na educação. Também não existe uma ideologia de gênero. O termo se refere a um grande número de coisas, mas principalmente ao que se chama de “estudos de gênero”.
O pesquisador Rogério Diniz Junqueira, da Universidade de Brasília, explica em um artigo* sobre o tema que dentro desses estudos “há teorias (no plural), que contemplam diferentes disciplinas, várias matrizes teóricas e políticas, nas quais figura gênero como um conceito (e não uma teoria ou uma ideologia) com múltiplas acepções e implicações críticas”.
Essas teorias tentam analisar, entre outras coisas, de onde vêm as ideias de masculino e feminino que dão base à nossa sociedade e questionam os papéis que são automaticamente atribuídos a homens e mulheres. Já parou pra pensar quem decidiu que rosa é “coisa de menina”? E a ideia de que mulheres são mais compreensivas e maternais, enquanto os homens seriam mais duros e racionais? Os estudos de gênero buscam investigar as raízes e consequências dessas pré-definições.
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A partir desses estudos surgiram propostas para uma educação que seja mais inclusiva e respeitosa. “O que havia no Plano Nacional de Educação era a previsão de diretrizes para educação sexual, combate às discriminações e promoção da diversidade de gênero e orientação sexual. Isso é princípio básico de uma educação democrática e inclusiva, dois eixos fortes do Plano Nacional de Educação como um todo”, diz Andressa.
E o que significa incluir esses termos nos planos de educação? Quer dizer que há interesse em ensinar sexo para crianças ou ainda estimulá-las a serem gay?
Não. Educação sexual não quer dizer que a escola vai transformar crianças em homossexuais ou as incentivarem a “mudar de sexo”. Significa que a escola vai educar as crianças para aceitarem e respeitarem aquelas que forem homossexuais ou tiverem uma identidade de gênero diferente da que foi atribuída ao nascer (de acordo com o seu órgão sexual biológico).
Orientação sexual ou identidade de gênero
Orientação sexual se refere à sexualidade e ao amor. Mulher que gosta de mulher tem a orientação sexual chamada de lésbica. Já a mulher que se relaciona com homens tem a orientação heterossexual.
Mas quando falamos de transexualidade, de transgênero ou cisgênero, estamos falando de identidade de gênero. Olhar para o espelho e não se identificar com aquilo que vê. Esse é o sentimento dos chamados transgêneros, pessoas que não se identificam com o sexo biológico atribuído a elas desde o nascimento.
Indivíduos trans possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento. A identidade de gênero é diferente de orientação sexual — pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.
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Andressa explica que a presença desses termos nos planos de educação tem como objetivo uma educação que aceite a diversidade. Ela diz que “a educação para as diversidades é importante porque é necessário desconstruir estereótipos e preconceitos para que possamos cumprir com a formação plena e cidadã de nossas crianças e jovens e também construir uma sociedade que combata todo e qualquer tipo de violência movida pela discriminação e pelo preconceito”.
Educação sexual
Trata-se de um tema transversal (que passa por diversas disciplinas, principalmente a biologia) do currículo escolar. A educação sexual visa preparar os alunos, de acordo com sua idade, para uma vida sexual segura e saudável, com prevenção de doenças e gravidez, por exemplo.
Educação sexual não é aula de sexo.
“Relatórios da Unesco demonstram que a educação sexual não incentiva a atividade sexual e nem o comportamento sexual de risco; também não faz aumentar infecções relacionadas a IST [infecções sexualmente transmissíveis] ou aids”, afirma Andressa Pellanda. A educação sexual também combate o abandono escolar por gravidez precoce e “ajuda jovens a se tornarem mais responsáveis em suas atitudes e comportamentos com relação à saúde sexual e reprodutiva”.
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A educadora diz que “programas que promovem somente a abstinência sexual falham na prevenção à iniciação precoce e na redução da frequência e no número de parceiros entre os jovens”.
Cuidado com a desinformação
Rogério Diniz Junqueira explica que a ideia de “ideologia de gênero” é uma ferramenta de manipulação usada por grupos políticos para gerar adesão da sociedade de acordo com o interesse desse grupo. “É um slogan, uma categoria de mobilização, que pode se referir a muita coisa diferente, desde discussão sobre igualdade salarial entre homens e mulheres, discussões sobre gênero e sexualidade na escola, campanhas de prevenção de HIV, aborto, casamento entre pessoas de mesmo sexo. ”, explica ele e afirma que isso pode variar de acordo com o que está no debate político do lugar.
Ao falar no tema, esses grupos procuram tocar sempre em assuntos sensíveis, como sexualidade, aborto e pedofilia, para gerar pânico. Segundo o pesquisador, a ideologia é usada para desmoralizar o adversário político, dizendo que ele faz coisas horríveis e moralmente condenáveis, o que leva a esse pânico moral.
Um exemplo disso foram as notícias falsas que circularam dizendo que Haddad distribuiria mamadeiras em forma de pênis.
“O pânico moral possui forte potencial mobilizador e alta capacidade de atrair diferentes atores que nem precisam ser muito conservadores ou preconceituosos, mas que, diante do escândalo fabricado, ficam alarmados”, conta Rogério. Com isso, o candidato contrário à ideologia de gênero nem precisa mostrar suas propostas.
A reportagem tentou entrevista com diversos dos principais nomes atuantes contra a ideologia de gênero no país, mas não teve retorno.