“Treze anos separam as duas vezes que pensei em abortar. Engravidei aos 15, logo depois da primeira relação sexual com o meu marido – na época nos conhecíamos há dois anos e estávamos juntos em um relacionamento há pouco mais de um ano. A gravidez veio como uma sentença e, apesar de não querer seguir com a gestação, não pude fazer essa escolha. Fui obrigada pelos meus pais a parar com os estudos e precisei me dedicar integralmente ao papel de mãe.
Aos 28 anos e já mãe de duas crianças, estava finalmente realizando o sonho de retomar meus estudos quando me deparei novamente com a mesma situação: uma gravidez não planejada e o desejo de não prosseguir com ela. A diferença é que, passados tantos anos, me sentia com mais autonomia e decidi realizar um aborto.
Na transição entre contraceptivos, engravidei
Depois de ser mãe duas vezes – e saber exatamente as diferenças entre uma gravidez planejada e outra não -, decidi não ter mais filhos, e há cinco anos já utilizava um implante contraceptivo. Minha ginecologista começou a suspeitar de ovário policístico por conta de mudanças hormonais e com o vencimento do implante, fiquei um tempo sem anticoncepcional para fazer a transição e investigar o problema. Nesse meio tempo, comecei a usar camisinha durante o sexo e estudar o método de percepção da fertilidade, mas, com a chegada da pandemia, manter uma rotina ficou complicado.
Logo a minha menstruação atrasou. Ansiosa, fiz o teste no mesmo dia e, assim que só uma das listrinhas apareceu, tirei foto e enviei para uma amiga, contando aliviada. Mas, para minha surpresa e decepção, essa amiga percebeu mais uma listrinha. Fui correndo buscar o teste que já havia jogado no lixo e confirmei: estava grávida. Foi horrível, fiquei me sentindo novamente com 15 anos.
Meu marido viaja muito à trabalho, e eu sabia que apesar das boas intenções, de uma forma ou de outra, a carga sobraria para mim. Não conseguia me ver grávida, amamentando ou parindo, e, por isso, conversei com ele e decidi não seguir com a gestação. Afinal, eu sei o que é ser mãe fora da romantização e idealização da sociedade, sei o quanto é difícil e o quanto precisamos estar disponíveis para criar uma criança.
A busca pelo aborto
No mesmo dia sentei na frente do computador e comecei a pesquisar sobre “aborto seguro”. Eu só conseguia pensar: “Que merda que é viver em um país onde isso não é legalizado, sendo que vou fazer de qualquer forma”. Procurando online, encontrei um lugar onde 4 comprimidos de misoprostol eram vendidos a 800 reais e a quantidade variava com o tempo de gestação.
Conversar com outras na mesma situação era angustiante, vi mulheres, a maioria jovens, fazendo dívidas para comprar o medicamento, contando sobre golpes que haviam caído e algumas nem sabiam calcular com quantas semanas estavam, todas desesperadas e vulneráveis.
Acabei decidindo não fazer o procedimento em casa perto dos meus filhos, e, no dia seguinte, resolvi procurar por uma clínica. Perguntei a uma amiga feminista se ela conhecia alguém que poderia me indicar algum lugar seguro, e, por acaso, ela tinha uma conhecida que há duas semanas visitou a clinica onde o procedimento era realizado.
Ligando lá, uma funcionária me fez várias perguntas: “Quem é você?”, “onde mora?” e “com quantas semanas você está?”. Após responder a todas elas, consegui algumas informações: o procedimento custava 5.500 reais (para o meu tempo de gestação que era de aproximadamente 4 semanas) e o pagamento podia ser feito metade à vista e o restante em até três vezes; o procedimento duraria 15 minutos e eu poderia viajar para ir embora no mesmo dia. Combinei tudo com o meu marido e marquei o procedimento para a semana seguinte.
Leia mais: Como é feito um aborto seguro?
A clínica ficava localizada em um bairro nobre de São Paulo. O lugar era bem movimentado, havia um segurança na porta e na recepção estavam a secretária, outras mulheres e alguns casais aguardando. Apesar do ambiente desconfortável, a maioria ali era bem diferente das mulheres que eu havia encontrado online.
Fui encaminhada para um quarto parecido com o de um hotel, havia uma cama, uma poltrona, uma mesa e um banheiro. Lá, fiz o pagamento e conversei com o médico ginecologista. Perguntei se existia um plano B e ele respondeu que não existia a possibilidade de dar errado – “já fiz mais de 50 mil abortos e faço isso com o mesmo amor que realizo um parto”, disse ele, que me explicou o método por aspiração, que eu iria sangrar um pouco e ele usaria ¼ do mesmo sedativo utilizado para a endoscopia. Eu estava nervosa e meu pensamento era só um: “se algo der errado, como vou exigir meus direitos se o que eu estou fazendo é ilegal?”
Antes de ser encaminhada para o centro cirúrgico, recebi um absorvente para colocar na calcinha e um avental hospitalar. Passei por uma porta grande, com um corredor enorme, tudo muito limpo e bem organizado. Fui encaminhada para o centro cirúrgico onde duas enfermeiras me esperavam. Passados alguns minutos, já deitada na maca ginecológica do centro cirúrgico, o médico chegou, pegou na minha mão e disse que ficaria tudo bem.
Fui sedada e acordei em 15 minutos, ainda um pouco confusa e com o médico dizendo que deu tudo certo. Em outro quarto, encontrei meu marido, tomei um remédio para cólica e comi um clube social e um Yakult, disponibilizados pela clínica. Fui liberada poucos minutos depois de o ginecologista passar para ver o sangramento e confirmar que estava tudo bem.
Leia também: Como fiz um aborto com Cytotec
Foi uma decisão de me priorizar
Após o procedimento, minha primeira sensação foi de coragem e alívio, afinal, eu tinha certeza da minha decisão. Mas não pude deixar de pensar em todas as outras mulheres que não tiverem acesso a isso e precisam se arriscar em métodos inseguros. Visitando os dois mundos, dos grupos que vendem cytotec e as clínicas, percebi que, no aborto, a criminalização é só uma barreira e o dinheiro define o quanto de risco você vai correr.
Uma semana depois, cheguei a questionar a minha escolha, se havia tomado uma decisão precipitada ou mesmo se tinha tirado a oportunidade de os meus filhos terem mais um irmão. Quando tomei a decisão de abortar, meu marido sugeriu contratar uma rede de apoio e algumas amigas diziam que eu daria conta, que a criança não passaria dificuldades financeiras, mas, com algumas sessões de terapia, entendi que não era sobre isso. As pessoas costumam achar que a decisão de abortar é só sobre a preocupação com o bem-estar da criança que poderia nascer, mas, no meu caso, a decisão era sobre mim, era um direito meu não querer ser mãe.
Apesar de ainda me sentir culpada em alguns momentos, foi a primeira vez na vida que me priorizei, e quando lembro dos meus motivos consigo ficar em paz, mas sei que o aborto é uma experiência que me marcará para sempre. E eu vou ter que aprender a conviver com os ônus e os bônus que essa decisão trouxe para minha vida.”
O depoimento foi dado a Aymê Brito
Saiba quando é permitido fazer um aborto dentro da lei no Brasil e veja o mapa dos hospitais que realizam o procedimento.