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Natalia Sousa é roteirista n'AzMina. Mulher negra, está com os cabelos solto, no estilo black power, sorrindo para a foto
31 de outubro de 2024

Luta contra o marco temporal é uma pauta de todos

“A gente ainda está mantendo o equilíbrio do planeta. O Povo Xokleng protege uma grande diversidade da Mata Atlântica. E a gente quer mostrar isso para as pessoas”

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Meu nome é Thaira Pripá. Eu sou da terra indígena Ibirama-Laklãnõ, do Povo Xokleng, que está sob a mira do agronegócio e do marco temporal. Essa tese diz que os povos indígenas só têm direito à terra que eles já ocupavam em 05 de outubro de 1988 – antes da publicação da Constituição Federal. 

Depois de todo o massacre orquestrado contra os nossos ao longo da história, temos que provar que estávamos aqui antes.  O nosso caso está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) e, a depender do que for decidido, estaremos mais perto de um colapso ambiental total.

Nossa origem

Cresci entre o meio urbano e a nossa aldeia, porque meu pai, Brasílio Pripá, era funcionário da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a gente mudava com alguma frequência.  Mesmo assim, a gente nunca ficou longe demais. As memórias mais bonitas que tenho da infância são da aldeia. 

Uma das características mais fortes do nosso povo é o espírito coletivo. As crianças, por exemplo, são cuidadas por todo mundo. O olhar para elas não fica centralizado nos pais e – principalmente – nas mulheres. Todo mundo é responsável pela criação. 

Originalmente estávamos espalhados por 3 estados: Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. Mas ao longo do tempo, tanto nossas terras quanto nosso povo foram sendo arrancados de nós. 

No século 19, matadores a mando do governo, os chamados bugreiros, dizimaram aldeias inteiras. Depois de matar, eles arrancavam as nossas orelhas e mostravam como troféus.  Num só dia de ataque, 244 dos nossos foram assassinados. Entre eles, muitas crianças. 

Nosso território vendido

Em 1914, o Serviço de Proteção ao Índio fez um contato, prometendo ajuda. Não foi o que aconteceu, fomos encurralados. O nosso território foi reduzido a 37 mil hectares em Santa Catarina. Só que nem isso ficou com a gente, porque depois de um tempo, o Governo do Estado vendeu as terras e hoje a gente tem posse só de 14.000 hectares.  

As partes mais férteis foram virando fazendas de imigrantes europeus, que hoje continuam lá, produzindo para o agronegócio. O veneno que eles usam desce pelo rio, contaminando a água que a gente bebe e usa para cozinhar.  

A diversidade de peixes também foi afetada. Hoje, é bem pouca comparada ao que foi anos atrás. O resto do solo que servia para o plantio ficou embaixo de uma barragem que o governo construiu nos anos 70.  

Eles queriam proteger as cidades do vale do Itajaí de serem alagadas pelas chuvas, o resultado é que eles deixaram a gente debaixo d’água. Escola, casa, animais de estimação, alimentos e até os acessos para sair da aldeia, tudo é engolido pela água. A gente tem aguentado tudo isso para salvar os não-indígenas. 

Marco temporal

Em 1999,  o Governo de Santa Catarina, madeireiros e agricultores entraram com um processo para expulsar a gente daqui. Um dos argumentos que eles usaram foi a tese do marco temporal.  O STF negou o recurso, dizendo que a tese do marco era inconstitucional. Mas ainda não deu para a gente a demarcação.  

O nosso processo para ter as terras de volta tramita no STF e ficou decidido que é um caso de repercussão geral. Então o  que for decidido pra gente vai valer para todo país, para todos os outros processos judiciais  envolvendo a demarcação de terras indígenas. 

O Congresso Nacional também está fazendo todo tipo de manobra pra roubar e explorar os territórios indígenas. Dois exemplos disso são a Lei 14.701/2023 que implementa o Marco Temporal e a PEC 48 de 2023 que pede a mudança na Constituição para incluir o marco. E o pior: elas têm ganhado força. 

Tanto é que o STF organizou reuniões de conciliação para discutir esse projeto e chegar a um acordo com o povo indígena e a classe política. Em uma dessas reuniões a gente se retirou antes dela terminar. Isso porque eles chegaram a falar em demarcar as terras, mas com o direito de explorarem o quanto quiserem o nosso território. Isso não é negociável para a gente. 

O que a gente quer mostrar para o Brasil e o resto do mundo é que a gente ainda está mantendo o equilíbrio do planeta.  O Povo Xokleng protege uma grande diversidade da Mata Atlântica. E a gente quer mostrar isso para as pessoas e dizer: ‘olha a gente tá numa crise climática. A gente viu isso durante semanas, o céu coberto de fumaça’. 

A gente quer mostrar para as pessoas o quanto é importante a demarcação para proteger esses territórios e mostrar que é uma questão de vida humana. A gente tá querendo proteger todas as pessoas, não só as pessoas indígenas. Essa luta contra o marco temporal tem que ser uma luta de todos nós. 

Leia mais: https://azmina.com.br/colunas/ate-quando-sangraremos-em-nome-do-projeto-colonial-brasileiro/?swcfpc=1
 *Esse depoimento foi dado a Natalia Sousa que escreveu e aprovou com a autora.
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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