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Têm se proliferado no Brasil, desde o ano passado, projetos e leis que visam inserir no calendário oficial, dos municípios e estados, dias ou semanas de “conscientização contra o aborto“, disseminando desinformação e mais estigmas sobre o tema. Aqui n’AzMina já mapeamos sete propostas do tipo pelo país. Três já foram aprovadas, em Santa Catarina, no Distrito Federal (DF) e em Taboão da Serra (SP). Outros, estão em tramitação em Limeira (SP), Santa Bárbara d’Oeste (SP), Teixeira de Freitas (BA) e Manaus (AM).
No começo de 2024, teve o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), sancionando a lei estadual n° 22.537, que inicia a “campanha de conscientização contra o aborto”. Nela, o estado deve organizar palestras sobre “a problemática do aborto” com o intuito de “conscientizar crianças e adolescentes sobre os riscos provocados pelo abortamento”.
A lei ainda prevê atividades que estimulem a “sensibilização da população acerca dos direitos do nascituro, do direito à vida e das imputações penais no caso de aborto ilegal”. E tem mais: mulheres que acessem o aborto previsto em lei devem ser submetidas a um exame de ultrassom para escutar os batimentos cardíacos do feto.
Foi Santa Catarina que abriu essa porteira antidireitos lá em 2021, quando promulgou a Lei 18.120 que institui o “Dia de Conscientização contra a Prática do Aborto“. Esse é mesmo estado que, em 2022, após vir a público o caso da menina de 12 anos que vinha sendo induzida por uma juíza a desistir do aborto legal, iniciou uma CPI para apurar conduta das médicas que realizaram o procedimento e das jornalistas que denunciaram o caso.
Ultrassons, vídeos e cartazes contra um direito
Submeter vítimas de violência sexual que buscam o serviço de aborto legal a ver imagens e ouvir os batimentos do feto em exame de ultrassom é considerado inconstitucional. É que isso viola o preceito fundamental de garantia à dignidade da pessoa humana e da vedação ao tratamento cruel, desumano ou degradante. Baseada nessa compreensão, a Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ) ingressou, no último dia 31 de janeiro, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a urgente suspensão da lei aprovada em Goiás.
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Em Alagoas, o desembargador Fábio Ferrario deferiu liminar que suspende a Lei 7.492 de Maceió, capital alagoana, aprovada nas últimas semanas de 2023. A legislação obrigava profissionais de saúde a mostrar “riscos e consequências” da decisão pelo aborto legal (por meio de imagens do desenvolvimento do feto e vídeos do procedimento cirúrgico). A decisão judicial registra a necessidade de que sejam assegurados os direitos das mulheres, o direito à saúde, e indicou que a análise do tema seja feita sob perspectiva de gênero – como sugere o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Proposta semelhante a de Alagoas havia sido apresentada e aprovada pela Câmara de Vereadores do município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mas foi vetada pelo prefeito Jorge Pozzobom (PSDB), após reações contrárias da sociedade.
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Violência institucional
Na capital gaúcha, dois projetos estão tramitando na Câmara Municipal nessa mesma linha. Um deles, o PLL 580/23, visa “proporcionar às gestantes vítimas de abuso sexual recursos adicionais, por meio da oferta de ultrassonografias, a fim de embasar suas decisões sobre a continuidade ou a interrupção da gravidez”. O texto diz que “o médico responsável deverá sugerir à gestante que escute os batimentos cardíacos do nascituro”.
A outra proposta, o PLL 578/23, pretende que as unidades hospitalares que atendem aborto legal coloquem cartazes “a respeito dos riscos e das consequências oriundos desta decisão”. Segundo o texto, no material deve conter: “explicação pormenorizada de cada tipo de procedimento abortivo, com ilustrações representativas; os danos físicos e psicológicos que o procedimento poderá ocasionar para a gestante; e qual seria o destino do nascituro após a realização do procedimento”.
A advogada do Anis Instituto de Bioética, Gabriela Rondon, aponta que muitas das tentativas de restrições ao exercício do direito ao aborto incorrem em violência institucional. “As propostas buscam desinformar a respeito do baixo risco do procedimento, e forçam, especialmente, vítimas de violência sexual, a reviverem experiências traumáticas como condicionante para acessar o direito.”
Articulação antiaborto
Em nível federal, tramita na Câmara dos Deputados uma proposta do professor Paulo Fernando (Republicanos-DF), que defende a inserção da seguinte mensagem nas embalagens de testes de gravidez: “Aborto é crime; aborto traz risco de morte à mãe; a pena por aborto provocado é de 1 a 3 anos de detenção”.
No Senado Federal, está em andamento a PEC 49/2023, de autoria do senador Magno Malta (PL-ES), que altera a Constituição para incluir a garantia de direito à vida desde a concepção; e o PL 4281/2023, de Eduardo Girão (Novo-CE), que institui o “Dia do Nascituro”. Girão é um dos principais articuladores da ofensiva antiaborto no Congresso Nacional. Ele também é autor de outro texto que veta qualquer modalidade de aborto por telessaúde.
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O aborto legal via telessaúde passou a ser realizado a partir da experiência do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital de Clínicas de Uberlândia (MG). A equipe lançou uma cartilha com orientações sobre o procedimento em 2021, e, desde então, a médica responsável tem sido alvo de ataques que ameaçam o exercício de sua profissão.
A avaliação de Gabriela Rondon é de que essas estratégias legislativas são uma tentativa de pulverização dos ataques a pautas sobre igualdade de gênero. Situação parecida já ocorreu no âmbito da campanha autointitulada “Escola Sem Partido”, que tinha como foco a retirada da discussão de gênero e sexualidade das escolas, e que o STF julgou inconstitucional.
É competência prioritária da União legislar sobre a saúde. “Há previsões tanto na Constituição, como em leis federais de proteção à saúde reprodutiva e do direito ao aborto, que não poderiam ser restringidas por legislações nos estados e municípios”, argumenta Gabriela. Essas propostas, portanto, não poderiam nem ser aprovadas por serem inconstitucionais. As que foram, deveriam ser vetadas pelo prefeito ou governador. Caso contrário, precisam ser judicializadas.