Muito antes de eu engravidar eu me perguntava como seria passar ao Cacá com amor os valores que eu aprendi na dor. Como alguém que nasce no nível de privilégios que ele nasceu poderá crescer consciente das dificuldades da vida? Como ele saberá como é difícil não ter um quarto (ou uma cama) só sua, só andar de ônibus (muitos) ou a pé quando era fim de mês e o dinheiro da passagem não tinha mais, se saiu da maternidade em uma SUV? Como fazer com que ele compreenda que o dinheiro não vem fácil para todo mundo porque vivemos em um mundo desigual e cruel, sem cair na falácia meritocrática do Work Hard, Play Hard e, ao mesmo tempo, ensinar-lhe a fazer bom uso de seus privilégios, tornando-o ciente de suas responsabilidades neste lugar?
Regular brinquedos, consumir conscientemente, proporcionar um ambiente diverso, plural, tudo isso foi surgindo conforme Cacá se tornava uma pessoa real com a qual iriamos lidar. E aí um outro ponto me pegou.
Eu convivo e vejo muitos jovens privilegiados que se orgulham de seu minimalismo, de não andarem de carro, de só usarem roupas orgânicas e comprarem de brechós. E muitas vezes acoplado a esse estilo de vida vem um julgamento a quem está ascendendo socialmente, ocupando espaços que sempre lhes foram negados, e isso também é problemático.
Qual, então, seria o ponto de equilíbrio? Há um valor limite na compra de brinquedos? No tipo de roupa? Como falar sobre dinheiro?
Eu me lembro como se fosse hoje do dia em que fui em um Outlet americano pela primeira vez na vida. Eu tinha dinheiro para gastar em roupas pela primeira vez em 28 anos e eu parecia o demônio da Tazmânia babando naquele playground de adulto. Essa reação virou piada interna aqui em casa e até hoje sou lembrada do surto consumista que me acometeu na ocasião.
Me lembrei desse momento ao refletir sobre este texto, porque falar de consumo em uma sociedade como a nossa é realmente bem complexo. Estamos pautados em uma lógica de mercantilização da vida, de corpos e sujeitos intrinsecamente ao capitalismo, mas também de escassez e impermanência, de exclusão. Ser minimalista quando se teve tudo na vida é muito mais fácil do que quando o mundo passou sua vida (e principalmente infância e adolescência) inteira te dizendo que determinados lugares e objetos não eram para você.
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Li no instagram da @ maeantiproibicionista: “Quem sempre teve tudo na vida não tem noção do quanto é bom o cheiro de roupa nova” e me lembrei desse dia no Outlet. A garota que nunca teve roupa nova, que saiu lá de baixo e chegou onde jamais imaginaria chegar, deslumbrou-se nesse lugar que pensou nunca seria seu e quis engolir tudo de uma vez para garantir que não lhe fosse escapar.
Consumo e aspirações são também reflexos de desejos. Fabricados pela indústria ou não são desejos. Aliás, toda a ciência do marketing se baseia no compreender os gatilhos desse desejo. Porque algumas marcas são aspiracionais e outras não? A ilusão da “casa própria” que na verdade é do banco, do carro financiado, das parcelas infinitas para qualquer coisa. No fundo, tudo isso é sobre desejo, o desejo de pertencimento.
Em uma sociedade de desigualdade profunda como a nossa, pertencimento passa por consumo e ostentação. Que seja do carro, do tênis, do Marlboro, da carne na mesa todo dia ou do número de Polys ou LOLs que seu filho tem em casa.
Então eu poderia fazer um texto para falar sobre consumo na infância abordando como dar limites, como explicar sobre dinheiro, quando é adequado dar mesada, semanada, como lidar com os desejos, com os impulsos e as birras. Mas não vou!
Porque quando estamos falando sobre consumo na infância, além de estarmos falando de capitalismo e exploração estamos falando principalmente de coerência e de EXEMPLO.
Não adianta nada a gente colocar teto no valor de um brinquedo porque considera aquilo “inútil”, “desnecessário” (para quem?) e se jogar no consumo quando estamos estressadas, ou comprar uma bolsa/calça/vinho que custa mais do que o salário de uma muita mãe arrimo de família e esperar que a criança entenda.
Falar de consumo é falar de desejo.
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O que te motiva a comprar? Que necessidade você está realmente tentando suprir? Por que, onde, quanto, como e quando você compra? De quem você compra?
Responsabilidade de consumo é complexa sempre mas deve ser encarada! Desde a blusinha de 10 reais à carne, à bolsa que custa uma viagem pela Europa, à própria viagem à Disney que pode custar um carro popular, e, até, à maconha paz e amor! Alguém está pagando o preço pelo nosso consumo e precisamos no mínimo não minimizar ou ignorar isso, inclusive ao conversarmos com eles.
O seu filho sabe de onde vem os itens que ele consome? Como eles são feitos? Qual a cadeia produtiva e de exploração envolvida?
Parece complexo não é mesmo? Mas se for algo inserido na reflexão familiar organicamente não será tanto. Ou, melhor dizendo, será tanto quanto todas as reflexões profundas e importantes que precisamos trazer para eles de alguma forma.
O consumo responsável e consciente é complexo em qualquer âmbito. Eu opto por não consumir marcas envolvidas em trabalho escravo e isso não me isenta de muita coisa, mas me deixa mais “tranquila”. Por outro lado, ainda como algumas carnes que de todos os pontos de vista (ambiental, exploração, crueldade e energético) é o que há de mais predatório para o planeta e todos os seus habitantes.
Consumo
responsável tem a ver também com protagonismo e escolhas porque vão ter coisas
que são importantes na minha família e que fazem zero sentido em outra e
vice-versa.
O que me preocupa e me interessa é sairmos do lugar de não escolha, de seguir o
fluxo sem questionar, de comprar porque todo mundo está comprando, ou não comprar
porque “está feio” apenas e não porque a gente refletiu sobre aquilo
tudo.
Fazemos o que podemos! O que não dá é pra não fazer nada ou achar que qualquer coisa que se faça é pouco apenas para usar como desculpa para isentar-se de tudo.
Como consumidores e pais e mães de consumidores, precisamos ter consciência sim de que contribuímos para algo e o que é esse algo, como funciona estruturalmente e qual nosso papel naquilo optando ou não por continuar dentro da sua realidade e convicções.
Já ouvi alguns “espera até ele entrar na escola e todos os amigos isso ou aquilo” e repito: não é simples, é chato e, na, maior parte do tempo, bastante cansativo, mas criar um filho de forma não machista, não racista e com consciência de classe no país que elegeu o Bolsonaro também é. Nem por isso devemos desistir.
No fim das contas, refletir sobre consumo na infância é mesmo refletir sobre o consumo dos pais, da sociedade e sobre nossas próprias inquietudes, desejos e aspirações.
Falar de consumo envolve necessariamente falar de frustrações e valores motivadores e sim, de política! Consumir, como tudo, é um ato político!