Antes de ler o livro O que é lugar de fala?, da filósofa Djamila Ribeiro, o conceito de lugar de fala me parecia algo próximo à “lacração”, ou seja, um tipo de argumento que não permite a continuidade do diálogo, encerrando-o em si mesmo, de tanto que essa mensagem se misturava com os conteúdos que nem sempre alargavam as discussões presentes nas redes sociais. E o incômodo era tanto, que eu evitava o uso desse conceito até ler o livro.
No livro, Djamila busca, da maneira mais didática possível, explicar o que é o conceito de lugar de fala e como ele tem sido utilizado, muitas vezes, de maneira distorcida, sobretudo nas redes sociais.
Para isso, o livro é dividido em três partes: a primeira é uma espécie de levantamento da possível emergência desse conceito e da sua relevância no discurso do Feminismo Negro, a segunda demonstra alguns pontos principais do pensamento feminista negro e por fim, na terceira parte, ela apresenta o conceito, de fato, com bases históricas e de vários outros campos do conhecimento.
No primeiro capítulo, fica evidente como o Feminismo Negro contribuiu para o alargamento das perspectivas do movimento feminista, que se pretendiam universais, mas que se revelaram insuficientes para abraçar a todas as mulheres. A partir do momento em que feministas negras tiveram seu discurso considerado, o movimento feminista branco teve a oportunidade de perceber que muitas práticas que visavam combater a discriminação de mulheres eram excludentes em relação a alguns grupos que pertenciam a outras realidades de gênero, classe e raça.
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Ao iniciar a discussão com trechos do discurso da abolicionista estadunidense Soujourney Truth, Djamila nos mostra há quanto tempo o conceito de universalidade de causas é limitado. Questionar de que mulheres se falava, quando lutava-se pela Liberação das mulheres, é chamar atenção para o fato de que não existe essa categoria universal “mulheres”, uma vez que as reivindicações de mulheres negras, naquele contexto (e em muitos outros), são diversas das mulheres não negras. E que, além disso, sabemos que existem discursos que são socialmente legitimados e discursos que não são.
Quando entendemos discurso como a possibilidade de enunciar realidades e ter esta enunciação ouvida, respeitada e legitimada socialmente, podemos observar que o discurso das mulheres negras não apenas teve e tem a capacidade de ampliar os debates universitários, como também pode promover desestabilizações do poder acadêmica e politicamente estabelecido. Assim, reconhecemos que é necessário que possamos enunciar, ouvir e respeitar a diversidade de vozes e conhecimentos que até hoje têm sido negligenciados pelo patriarcado, pelo colonialismo, pelo capitalismo, pela heteronormatividade e por outras tecnologias de violência e subordinação.
Para falar de lugar de fala, Djamila Ribeiro precisou recorrer ao Feminismo Negro, no diálogo entre Angela Davis e Audre Lorde, para mostrar, logo de início, que não há opressão que se sobreponha a outra. Desse modo, nenhuma das opressões seria maior ou menor que a outra, todas elas são agentes de uma tecnologia que atua há muito na privação da vida, da produção de conhecimento e, em última instância, da legitimação destes discursos como relevantes social e academicamente. E combatê-los significa combatê-los todos, pois enquanto uma opressão existir, a liberdade não existe.
Da teoria à prática
Na sequência, Djamila Ribeiro evoca as contribuições de importantes pensadoras brasileiras, como Lélia Gonzalez, Luisa Bairros e Sueli Carneiro, para chamar atenção de que mesmo dentro do pensamento feminista negro, o reconhecimento acadêmico das teorias internacionais em relação às nacionais (no nosso caso, brasileiras) ainda guarda restrições. É como se a validação dos conceitos, ainda que dentro do que hoje conhecemos como estudos decoloniais e interseccionais, precisasse passar pelo crivo da valorização do que é internacional, de preferência, norte-americano ou europeu.
Esse ponto foi, inclusive, mencionado por Angela Davis na palestra que proferiu em 2019 em São Paulo, quando agradeceu o reconhecimento de sua obra no Brasil, mas se surpreendeu com a pouca valorização das teóricas feministas negras brasileiras – o que nos mostra como é importante para quem atua na academia que o discurso interseccional e decolonial seja mais que discurso, seja prática em nossas pesquisas e em nossas ações.
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A união entre teoria e prática é importante quando falamos em Feminismo Negro e Djamila Ribeiro chama atenção para esse ponto a partir da obra de Bell Hooks, principalmente na intenção de se fazer o mais clara possível, característica que, em muitos pontos, dialoga com o livro O Feminismo é para Todo Mundo: políticas arrebatadoras da autora estadunidense. Tanto Ribeiro quanto Hooks ressaltam que é preciso atentar à garantia da enunciação, do respeito e da validação dos diversos saberes, não estritamente acadêmicos, mas das culturas oralizadas de povos originários, de ações comunitárias como movimentos sociais periféricos, e também estar atentas e atentos à tendência de individualizar as experiências.
Em seu livro, Bell Hooks aponta como a individualização das experiências pode ter sido negativa em certas instâncias do movimento feminista branco estadunidense, pois tem um impacto menos positivo do que a exposição de opressões que ocorrem de modo semelhante para todo um grupo. Hooks aponta que a luta por salários iguais em grandes empresas, por exemplo, seria menos efetiva do que uma luta coletiva e interseccional que transformasse a lógica do mercado de trabalho em um ambiente menos árido, seja para mulheres que disputam cargos de chefia, seja para aquelas que precisam organizar seu trabalho em duplas e triplas jornadas e que, muitas vezes, não tem seu lugar de fala legitimado devido às questões de classe ou raça.
Isso significa que outras pessoas que não sofrem determinadas opressões precisam reconhecer qual lugar de privilégio ocupam e, na impossibilidade daquele indivíduo oprimido se fazer ouvir, que essa pessoa faça o bom uso de seu privilégio e denuncie a opressão até o ponto em que não haja mais a impossibilidade de a pessoa oprimida se expressar. Ou seja: eu falo de um lugar de quem sofre opressão por ser uma mulher negra e lésbica, no entanto, como pesquisadora, eu tenho o privilégio de ocupar o espaço que uma pessoa negra, lésbica e em situação de rua não tem.
Eu não sei como é a experiência dela, eu não posso falar por ela, mas posso fazer o possível para que essa condição seja alterada, por meio da denúncia, nos meios em que minha voz é ouvida, até que ela possa, por si mesma, falar.
É neste ponto da obra que Djamila Ribeiro evoca o pensamento da teórica indiana Gayatri Spivak em relação à fala do subalternizado, e é importante observar como a subalternização dos indivíduos ocorre em variados espaços, incluindo o movimento feminista – afinal, se a mulher é considerada o “outro” no patriarcado, a mulher negra é o outro do outro.
Lugar de fala e feminismo perspectivista
Ainda sobre a questão específica do lugar de fala, é muito importante evocar o diálogo intrínseco que esse conceito faz com o feminist standpoint, também lido em alguns estudos como feminismo perspectivista, cujas premissas partiriam das perspectivas baseadas no conceito de Hegel sobre a “dupla visão”, ou seja, sobre a vantagem de perspectiva daqueles que ocupam posições subalternizadas.
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Ainda que o conceito de lugar de fala e de feminist standpoint sejam ideias muito similares e que atuam juntas, é importante observar sutis diferenças, pois o feminist standpoint atua como a análise dos locais em que podem ou não transitar, de maneira reconhecida e legitimada, os discursos subalternizados (ou seja, a recepção da fala e do conhecimento produzido por pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, entre outros). Essa análise desencadeia a crítica em relação às hierarquias sociais, discursivas e dos saberes e tenta, a partir de então, promover uma mudança.
Já quando falamos de lugar de fala, essa análise crítica parte do sujeito que, observando seu lugar social, reconhece o que, porque e como ele é autorizado a produzir saberes, não só de sua experiência subjetiva e singular, mas de como as experiências do grupo ao qual ele pertence são relevantes para a formulação daquele discurso, daquele saber, daquele relato. Importante frisar, como está no livro, que isso não é uma visão essencialista que atesta que, por exemplo, eu que sou uma mulher negra e lésbica, só posso falar sobre racismo e homofobia. Mas sim que eu tenho a dimensão de quem eu sou, em termos de indivíduo e de grupo, por quais opressões eu passo, quais privilégios eu tenho e, a partir disso, o que e, principalmente, como eu tenho possibilidade de falar.
Muito além da “lacração”
É importante considerar a respeito do que popularmente o “lugar de fala” se tornou, com essa visão de algo próximo à “lacração” mencionada no início do texto. A partir das explicações que visavam mesmo não suscitar dúvidas, eu fiquei com algumas questões aqui para compartilhar:
- A quem serve a confusão em torno deste conceito? Sobretudo, quando a gente pensa em lugar de fala sendo usado em redes sociais cuja tendência tem sido, ao invés do diálogo, a “lacração”?
- Teria toda essa confusão se o conceito partisse de outro enunciador? Por exemplo, imaginemos que fosse um homem velho, heterossexual a resgatar esse conceito. Seria ele divulgado massivamente de formas tão diversas e, às vezes, utilizado de forma oposta, inclusive, como ferramenta de silenciamento?
Para finalizar, lendo o livro, eu lembrei muito de um texto que gostaria de compartilhar aqui que dialoga demais com o da Djamila Ribeiro:
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“Quero uma sapatão para presidenta. Quero uma pessoa com Aids como presidenta, e quero um bicha como vice-presidente, e quero alguém sem seguro médico, e quero alguém que tenha crescido num lugar onde a terra estava tão contaminada com resíduos tóxicos que não terá outra escolha a não ser ter leucemia. Quero uma presidenta que tenha abortado com dezesseis anos, e quero um candidato que não seja o mal menor, e quero uma presidenta que tenha perdido o seu último amante por causa da Aids, que teve seu amante nos braços e soube que estava morrendo, e que siga vendo isso nos seus olhos a cada momento que se deita para descansar. Quero uma presidente que não tenha ar condicionado, um presidente que tenha ficado em pé na fila de um hospital, que tenha ficado parado no congestionamento, que tenha perdido a seguridade social, e que tenha estado desempregado, que tenha sido demitido, que tenha sido assediado sexualmente, e que tenha sofrido assédio por ser bicha, sapa ou trans, e que tenha sido deportado ou deportada. Quero alguém que tenha passado a noite entre as tumbas, e que tenha colocado uma cruz em chamas no seu gramado, e que tenha sobrevivido a um estupro. Eu quero alguém que tenha amado e se machucado, alguém que respeito o sexo, que tenha errado e que tenha aprendido com os erros. Eu quero uma mulher negra para presidenta. Quero alguém com os dentes estragados, alguém que tenha provado a péssima comida de um hospital, alguém que se travista, que tenha usado drogas e feito terapia. Eu quero alguém engajado numa desobediência civil. E quero saber por que isso não é possível. Quero saber porque nós aprendemos que em algum lugar o presidente é sempre um palhaço: sempre um cafetão e nunca uma puta. Sempre um patrão, nunca um trabalhador, sempre um mentiroso, sempre um ladrão que nunca é pego.”

*Claudiana Gois é mestra pelo programa de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, desenvolve no Doutorado a pesquisa sobre a afetividade entre personagens lésbicas na literatura nacional com ênfase em Gênero, Estudos Feministas e Estudos Interseccionais. Feminista lésbica e antirracista, acredita no amor como arma para tornar o mundo um lugar livre das opressões patriarcais e capitalistas.