Em meio à pandemia de covid-19, protestos contra o racismo e a brutal violência policial levaram milhares de manifestantes às ruas dos Estados Unidos. O momento pede ação, não há mais possibilidade de mediação racial da forma como se apresenta a conjuntura. Acompanhamos por meio da hashtag #blacklivesmatter vídeos e fotografias que carregam não só a força imagética, mas também narrativas negras norte-americanas que têm como gatilho a violência contra a população que compõe 13,4% do país.
Nos últimos dias, pelo menos 40 cidades impuseram toque de recolher (entre elas Chicago, Los Angeles e a capital Washington), num país que se mantinha até então em quarentena diante dos mais de 100 mil mortos pelo coronavírus. O assassinato, filmado, do segurança George Floyd, homem negro asfixiado covardemente por um policial branco (imobilizado com a ajuda de outros agentes) em Minneapolis, está balançando as estruturas de um território com histórico racista datado de séculos.
A revolta dos manifestantes que ocupam as ruas de todo país aponta para a falta de controle das autoridades locais diante da insurgência do povo (negros, não-brancos e brancos) que não estão mais dispostos a tolerar (negres nunca aceitaram) a estrutura genocida que mata vidas negras, vítimas de uma necropolítica (conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe que define o conjunto de políticas de controle social que o Estado usa para definir quem vive e quem morre) vigente nos EUA e também por aqui.
O caso de Floyd foi mais um de uma longa lista de negros mortos pela polícia durante abordagens violentas. Em 2014, o assassinato de Eric Garner em Nova York parou o país e deu origem ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), em ação que se tornou a maior articulação política dos negros norte-americanos da atualidade.
Política que desvaloriza vidas negras
Thiago Amparo, advogado e professor da FGV, explica que tais atitudes da polícia não são somente um desvio de conduta, mas a reencarnação da própria função de controle social para as quais as polícias foram criadas. A gênesis de tal sistema está relacionada com a escravidão tanto nos EUA quanto no Brasil.
Estamos falando de um racismo estrutural presente no modo de atuação da polícia que causa a desvalorização de vidas negras e o controle ostensivo e forte, em territórios periféricos, uma nítida abordagem agressiva quando se trata desta população.
Somos educados para acreditar que pessoas negras são criminosas, essa é a verdade. Homens negros, e pessoas negras em geral, são representados excessivamente nos noticiários, e fora deles, como criminosos. Em nossas terras tupis contabilizamos a morte de 1 negro a cada 23 minutos (dados da ONU), um genocídio em curso e que só se aprofunda: o assassinato de jovens negros cresceu 429% em 20 anos, mostra estudo da Fundação Abrinq do ano passado, baseado em dados do Ministério da Saúde.
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O movimento negro e ativistas dos direitos humanos denunciam essa realidade desde sempre no Brasil. Manifestantes saíram às ruas em protesto pela violenta morte do adolescente João Pedro e de tantas outras crianças negras e periféricas que foram mortas em operações policiais: Kauê, Kauã, Kauan, Jenifer, Ágatha, Ketellen – a lista é grande.
O Brasil aparece no ranking da ONU como o sétimo país mais desigual do mundo e, no quesito raça e classe, são os corpos negros que compõem a lista dos mais pobres, encarcerados, mortos e analfabetos. A elite (branca) brasileira ainda hoje tenta nos negar todo e qualquer direito, por isso a caminhada é complexa.
Como diz a filósofa Djamila Ribeiro: “Tá na hora do Brazil com Z conhecer o Brasil com S” e finalmente tomar coragem de mexer na ferida da escravidão, ainda aberta, sabendo dos incômodos, dores e mudanças de privilégios que isso irá gerar. A sociedade brasileira está disposta a fazer esse debate e discutir os privilégios de raça, gênero e classe que sustentam as desigualdades desse país?
Estratégias de resistência
Essa realidade une as forças de luta do movimento negro brasileiro ao norte-americano no enfrentamento ao racismo. Temos diferenças históricas de características e trajetórias (lá a população negra é minoria e aqui é 56%, por exemplo), mas isso nunca nos dividiu, pelo contrário, trocamos experiências e estratégias de resistência.
A historiadora Raquel Barreto nos lembra que a maior experiência de liberdade e insubordinação negra nas Américas foi no Brasil e chamava-se Quilombo dos Palmares.
Temos um objetivo em comum, ainda que tenhamos histórias e culturas distintas – e isso deve ser levado em conta nas nossas estratégias de guerrilha. Sabiam que o Brasil é o país que mais mata ativista? Pois é, o buraco é muito mais embaixo.
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Agora, o bom exemplo de estratégia que pode ser aplicada nas nossas manifestações é o cordão humano, ou escudo, feito por pessoas brancas somando na luta antirracista. Topam? Tá na hora de colocar a mão na massa porque antirracismo é prática diária, quais são as suas?
E cara gente branca, não fiquem na espera de que nós vamos ensinar “como ser um bom aliado”, não é nossa obrigação educar vocês. Estudem, ouçam o movimento negro, leiam pensadores e intelectuais negros, ouçam artistas negros, conheçam as histórias dos líderes e abolicionistas negros. Optem por sair da zona de conforto. Lembrem-se que quem fica neutro em situações de injustiça escolhe o lado do opressor.
VIDAS NEGRAS E PERIFÉRICAS IMPORTAM!