Quem diz que as mulheres são descontroladas com dinheiro desconhece completamente a realidade das mulheres negras chefes de família no Brasil. Mesmo enfrentando desafios econômicos significativos – como ganhar sistematicamente menos do que os homens e pessoas brancas – somos forçadas a desenvolver habilidades excepcionais em administração de recursos.
Afinal, como sobreviver com até dois salários mínimos diante do atual custo de vida? Como administrar essa renda para dar conta de moradia, alimentação, vestuário, transporte num contexto em que só o custo do aluguel tem uma média de 1 salário mínimo na maior parte das capitais brasileiras?
A verdade que o Brasil se recusa a admitir é que as mulheres negras deste país são verdadeiras heroínas da gestão financeira. Equilibrando orçamentos apertados, “se viram” no empreendedorismo… Tudo para garantir que haja comida no prato da família até o fim do mês, em um contexto de inflação, desemprego e instabilidade econômica.
Por isso, neste Julho das Pretas, resolvi trazer algumas reflexões sobre mitos que circulam socialmente sobre a relação das mulheres negras com o dinheiro.
Mito 1: Mulheres são descontroladas
Em um cenário de inflação dos alimentos, mulheres negras se tornam excelentes administradoras, encontrando maneiras criativas e eficazes de esticar cada centavo. O DIEESE calcula, por exemplo, que o salário mínimo necessário para se viver no Brasil seria de R$ 6.946,37. Esse valor é bem distante da realidade do salário mínimo atual de R$ 1.412, e da remuneração média recebida pelas mulheres negras, de R$1.948,00 por mês (Ibre/FGV, 2023). Como é possível administrar essa renda, senão com muito controle, malabarismo e disciplina financeira? Eu realmente gostaria de ver esses grandes CEOs administrando um salário mínimo para dar conta de uma família com duas crianças, por exemplo.
Mito 2: O endividamento feminino é falta de habilidade financeira
Os dados mostram que o aumento das dívidas entre as mulheres é frequentemente resultado de fatores estruturais, como a elevação dos custos de vida e a responsabilidade de sustentar famílias inteiras com rendas insuficientes. Um artigo do Valor Econômico apontou que o endividamento é muitas vezes uma resposta a necessidades básicas, não um reflexo de má gestão.
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É preciso contextualizar o endividamento feminino no Brasil. Ele bateu recorde após um ciclo de pandemia, desemprego, flexibilização do trabalho, aumento nos preços dos alimentos e do custo de vida em geral! Atribuir o crescimento das dívidas entre as mulheres a uma falta de gestão é, no mínimo, ignorar a realidade da economia brasileira.
Mito 3: Mulheres não sabem administrar
Em muitas famílias brasileiras, as mulheres são responsáveis pela administração do orçamento doméstico, fazendo escolhas difíceis diariamente para garantir a sobrevivência e o bem-estar de todos. As mulheres negras, em particular, demonstram uma resiliência e habilidade impressionantes ao gerenciar recursos limitados. Vale lembrar que, de acordo com o IBGE, das 11 milhões de famílias monoparentais chefiadas por mulheres no Brasil, 62% são negras – cerca de 6,8 milhões de domicílios.
Mito 4: Mulheres negras não sabem planejar o futuro
Esse é outro equívoco que considero bastante prejudicial. Quantas mulheres negras mais velhas contribuem até para a criação de seus netos na periferia? Não podemos chamar essas práticas de planos financeiros que visam não apenas a sobrevivência imediata, mas também a construção de um futuro melhor? Precisamos recuperar a história das Irmandades e Confrarias para compreender jornadas de mulheres negras que, apesar das adversidades, conseguiram poupar, investir e educar seus filhos, desafiando todas as estruturas econômicas.
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Além de acabar com esses mitos, é crucial reconhecer a enorme contribuição das mulheres negras para a economia brasileira. Historicamente, nós realizamos o trabalho do cuidado (entre não remunerados e trabalhos precarizados), gerando valores imensuráveis para o funcionamento da sociedade. Essa força, quase sempre invisível e não reconhecida, inclui desde o cuidado com os filhos e os idosos até o apoio comunitário. Ao perceber e valorizar essa contribuição, teremos uma compreensão justa e completa do papel das mulheres negras na economia brasileira. Para se ter uma ideia, estima-se que, se o trabalho doméstico não remunerado fosse pago, isso representaria cerca de 10% do PIB do Brasil.
A visão equivocada sobre a relação das mulheres negras com o dinheiro não apenas é injusta, mas também ignora a busca resiliente por um futuro melhor. As mulheres negras brasileiras, na verdade, deveriam ser coroadas por desafiar a desigualdade econômica e ir à luta todos os dias.