E se a personagem estiver numa posição de poder, será negra? Qual foi o último livro com personagens negras naturalizadas que não estivessem atravessadas pelo racismo que você leu? Questionamentos que nos levam a sérias reflexões: o racismo estrutural humaniza de tal forma a branquitude que muitas vezes nos movemos automaticamente para ambientes imaginários também ocupados quase que exclusivamente pelo corpo branco onipresente. A construção de novas narrativas decolonias busca se deslocar do padrão branco já estabelecido através da hegemonia cultural e econômica em boa parte do mundo. A pluriversalidade na construção de novas histórias e personagens não brancas deve ser levada em consideração como premissa básica para que não se estacione num único estereótipo de romantização do período da escravidão.
A escritora Toni Morrison em seu ensaio “O fetiche da cor”, discorre sobre as maneiras como a literatura usa a cor da pele para revelar caráter ou impelir a narrativa, “Seja pelo horror de uma única gota do místico sangue “negro”, ou por sinais de superioridade branca inata, ou de um poder sexual perturbador e excessivo, a identificação e o significado da cor são muitas vezes o fator decisivo (…) O colorismo é tão fácil… é o derradeiro atalho narrativo”.
Toni afirma que o fetiche da cor apresenta uma força profundamente destruidora. Segundo ela há muitas oportunidades de revelar a raça na literatura, quer tenhamos consciência disso ou não. “Mas produzir uma literatura não colorista sobre pessoas negras foi uma tarefa que considerei ao mesmo tempo libertadora e árdua (…) Após décadas lutando para escrever narrativas fortes que retratassem personagens decididamente negros, eles podem se perguntar se eu venho praticando o branqueamento literário. Não. E não estou pedindo para ninguém se juntar a mim nessa empreitada. Mas estou decidida a neutralizar o racismo barato, a aniquilar e desacreditar o fetiche da cor rotineiro, fácil, disponível, que remete à própria escravidão”.
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Quantos autores negres você têm na sua estante?
Vocês lêem autoras negras? Quantos nomes femininos & negros estão na estante ou naquela indicação de boa leitura para um amigo (a)? Consumir livros de ficção ou mesmo conteúdo acadêmico quando o escritor (a) está fora do que soa conhecido, pode nos fazer desistir da leitura. Pensar filosofia no Brasil ou aprofundar nas questões de ciências humanas, sociais e políticas, significa estudar majoritariamente teorias e análises de intelectuais europeus; sabemos que existe uma resistência quanto à produção intelectual de pessoas que fazem parte de grupos oprimidos. A não validação de suas falas e até a negação do lugar de intelectuais para essa população é muito comum já que conhecimento, poder, dinheiro e afeto está nas mãos brancas, visto que o “outro” é passível de objetificação e tal status não possui muitas chances de subir na pirâmide hierárquica. A filósofa Djamila Ribeiro ao citar Lélia Gonzalez em seu livro “O que é lugar de fala”, afirma que:
“Quem possui o privilégio social, possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal é o branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e assim invizibilizando outras experiências do conhecimento.”
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Como bem disse o escritor e jornalista Ta-Nehisi Coates, a desumanização racista não é apenas simbólica; ela delimita as fronteiras do poder
Por que não se publica a autoria negra brasileira?
Ou, por que demora tanto para que grandes editoras comerciais editem o trabalho de pesquisadores e intelectuais negres? Primeiro, podemos rever historicamente o passado escravista nacional, muito do que sabemos hoje teve início ali: de alguma forma toda violência brutal praticada pelos colonizadores europeus contra a população negra e indígena e o “desfecho” (pois ainda carregamos as feridas seculares) desse período, determinou qual seria a condição social do negro no Brasil. Aliando isso ao racismo estrutural que por décadas tonificou sua raiz, vemos, dentro de inúmeras outras consequências abissais, que existe ainda a crença no mito da democracia racial.
O apagamento do sujeito negro como sujeito histórico, como sujeito que escreve a sua própria história (o negro visto por ele mesmo) foi/é tão perverso que nomes como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Cidinha da Silva e mais uma extensa lista de intelectuais e pesquisadores seja desconhecida por boa parte das pessoas. Se observarmos criticamente e sem o véu da cegueira, é nítido que os estudos da humanidade são sempre eurocentrados: absorvemos e aceitamos os saberes europeus, impostos como a verdade absoluta e inquestionável. Criamos nossa identidade/cultura/intelectualidade baseada na visão europeia ou norte-americana.
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Angela Davis durante sua palestra no Brasil ano passado precisou escancarar sua dúvida do por que de quando nós, brasileiras, pensamos no feminismo, olhamos para os EUA se temos aqui nomes como Lélia? Afinal, só quem vive no Brasil (e aqui não fecho para novos aprendizados) pode refletir sobre a negritude brasileira. Reconheço que temos caminhado, a passos lentos, no quesito publicação de autores negres, porém é necessário questionar a atenção dada à produção de autoria negra estrangeira, especialmente norte-americana, e o ato de ignorar intelectuais nacionais.
Questionar o que consumimos é essencial para exercitar o pensamento crítico.
Sobretudo não se esqueçam, leiam autores negres!