Este ano, o dia 13 de maio marcou os 132 anos da abolição (inacabada) da escravatura no Brasil – data que até hoje é ensinada nas escolas como sendo de protagonismo da princesa Isabel com a assinatura da Lei Áurea e apagando da história a luta e resistência dos escravizados por liberdade. Nosso país ainda vive na obscuridade colonial e utiliza o racismo para desumanizar e negar o acesso à educação para o povo negro.
Há pouco mais de 20 anos, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional reafirmou o direito à educação como obrigatório, universal e um dever do Estado. Após intensa campanha #AdiaEnem nas redes sociais, o governo finalmente decidiu adiar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) – até então, o Ministério da Educação insistia com a manutenção mesmo em meio a uma pandemia que suspendeu aulas, o que aumentaria ainda mais as desigualdades no acesso ao ensino no Brasil.
O Enem é um dos principais meios de ingresso ao ensino superior, principalmente para estudantes do ensino público. O número de pessoas negras nas universidades públicas (as melhores do país) aumentou nos últimos anos, mas ainda está longe de ser um reflexo do percentual de negros da população brasileira, que ultrapassa os 50%.
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A crença no mito da democracia racial nos alimenta ao longo da vida com a narrativa de que a branquitude é universal e isso precisa ser ressignificado. Pessoas brancas e ricas não são mais inteligentes, criativas ou bonitas. Apenas possuem diversas oportunidades e espaço para se mostrarem produtivas. Enquanto isso, os feitos e a história negra são sistematicamente apagados.
Abolição da escravidão pra quem? Se a mentalidade casa grande e senzala está mais do que nunca escrachada nesta pandemia. Exemplo claro disso é o trabalho doméstico, exercido majoritariamente por mulheres negras, ter sido estabelecido por governos como serviço essencial – o que o coloca no mesmo grupo de serviços de saúde, farmácia e mercado.
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Pensar racismo no Brasil é compreender a hierarquia racial latente: o homem branco aparece no topo das estatísticas dos privilégios e as pessoas negras e indígenas no topo das estatísticas de vítimas de violência policial, miséria e desemprego. A desigualdade social no Brasil tem cor. Nossa desobediência epistêmica visa romper com o pacto narcísico que torna branquitude sinônimo de graça e poder.
Essa herança escravocrata, ferida longe de estar cicatrizada, é perversa e mantém a mentalidade do país ainda no obsoleto período colonial. E isso passa pelo ensino. Estudantes mais pobres, que enfrentam maiores dificuldades para estudar com as escolas fechadas, terão menores chances no Enem, o que agrava as desigualdades educacionais, como mostrou reportagem da Folha.
Sem o adiamento do Enem, presenciamos mais uma forma de controle e opressão contra quem hoje já tem menos acesso aos seus direitos.
Educação para superar a escravidão
No artigo “Educação após Auschwitz”, o sociólogo e filósofo alemão Theodor Adorno avalia que para que as monstruosidades do nazismo jamais se repitam é necessário discutir exaustivamente sobre o ocorrido para entender todos os mecanismos sociológicos-psicológicos-históricos ali utilizados.
Por meio da educação, principalmente a infantil, podemos conscientizar pessoas. É um trabalho complexo, uma energia investida para uma nova leitura dos fatos. A Alemanha é um país que não esqueceu o seu passado: superou a etapa de negação; as escolas ensinam sobre as atrocidades do nazismo; nas ruas, memoriais e museus não deixam que a verdade histórica seja esquecida. Enquanto o Brasil ainda vive na negação quanto às monstruosidades da escravidão.
Como superar a etapa de negação e assumir que precisamos curar um acontecimento que se faz ainda presente? Na Alemanha o nazismo causa vergonha, e a escravidão por aqui? Quais versões da história negra te ensinaram na escola, que os africanos toparam numa boa embarcar para o Brasil?
Questionar discursos coloniais racistas, que se estabelecem como violência estrutural de um grupo sobre outros, é primordial para barrar representações que ditam o lugar do povo negro em posições de subalternidade.
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O educador Paulo Freire defendia que ensinar não é transferir conhecimento, mas sim criar um ambiente no qual o conhecimento possa ser produzido – o que é essencial para instrumentalizar pessoas para o debate e pensamento crítico.
Vemos hoje que as universidades brasileiras são associadas à balbúrdia, justamente quando cresce a presença de estudantes negros nesses espaços, resultado de políticas afirmativas como cotas raciais – mera coincidência?
A branquitude sempre se gabou do status de ser maioria por ali, mas tais instituições perdem esse valor nobre quando uma maior diversidade passa a ocupar as salas de aula – tomando posse do que também é seu por direito. Podemos imaginar qual o grupo que, mais uma vez, teria o privilégio de, sem o adiamento do Enem, embarcar nas universidades no próximo ano, né?
Adia Enem 2020!