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gabi literatura
4 de agosto de 2022

A literatura é janela para as maternidades possíveis

Cada vez mais autoras expõem as vísceras de suas experiências e contribuem para a pergunta atual: ser ou não ser mãe?

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Cada vez mais autoras expõem as vísceras de suas experiências e contribuem para a pergunta atual: ser ou não ser mãe?

A escritora colombiana Pilar Quintana tem ganhado espaço no Brasil desde a publicação de seu primeiro livro por aqui. Em A Cachorra, uma novela tão curta quanto intensa, ela conta a história de Damares, que quer muito ter um filho, mas não consegue. Ela adota, então, uma cachorra e essa relação se constrói baseada em uma complexidade sufocante. Mas as personagens de Pilar já passaram da pergunta inicial dos debates: ser mãe ou não ser? Por isso, sugiro darmos um passo atrás.

Estou naquela fase em que muitas amigas estão tendo filhos. E admito que me sinto um pouco pressionada. Não a ter um filho, mas a tomar uma decisão. Na obra Maternidade, a canadense Sheila Heti nos coloca frente a frente com uma narradora que está diante desta questão. Sincera e com um humor peculiar, a personagem narra as conversas com parentes, amigos, amigas e até vizinhos que sempre estão querendo saber: e aí, você vai ser mãe? Beirando os quarenta anos, ela se vê perseguida pelo tal relógio biológico e recorre aos sinais do corpo, às observações do mundo e ao misticismo para chegar a uma resposta. Passa horas jogando moedas para o I Ching – texto da sabedoria chinesa que há milhares de anos é usado como uma espécie de oráculo.

Na ocasião do lançamento de Maternidade no Brasil, em 2019, Sheila Heti deu uma entrevista em que dizia estar contente por abrir espaço para a voz de mulheres que, como ela, não queriam ser mães, e estavam pouco representadas na literatura, em outras artes e no debate público de maneira geral. A escritora foi contundente: “parem de perguntar às mulheres que não têm filhos porque elas não têm filhos”.

No mesmo ano, a canadense veio à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) como autora convidada e nunca esqueci de uma conversa da qual ela participou na programação paralela, mediada pela fundadora da Rádio Novelo, Branca Vianna. A entrevista virou um episódio bônus do podcast Maria Vai com as Outras. Ela disse ali algo que caiu como chumbo na minha cabeça. Explicou que a personagem só acharia uma resposta razoável à decisão sobre a maternidade quando recuasse e respondesse outra pergunta – essa, sim, essencial: eu sou capaz de ser fiel aos meus desejos ou estou fazendo o que o mundo espera de mim?

Essa interrogação me sacudiu naquele dia e tantas vezes depois. Desde que conheci esse livro de Sheila e a ouvi falando sobre ele, uso essa pergunta como guia em muitos momentos. E aí – spoiler – percebo que várias vezes estou fazendo o que se espera que eu faça, colocando meus desejos em uma gavetinha e cumprindo o papel social que me designaram, como a grande dama que esperam que sejamos.

Maternidade foi uma espécie de marco inicial na minha estante de um segmento hoje prolífico e relevante na literatura: o dos livros que tratam da maternidade ou de seu entorno com franqueza. Além de mais mulheres escrevendo sobre a decisão de não ter filhos, parece ter-se aberto a porta para tantas personagens e narradoras que escolhem tê-los, mas depois se arrependem, ou descobrem as dores, as angústias, os perrengues, e falam deles. A romantização tem ficado em outro tempo.

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O custo da maternidade

É difícil imaginar que uma década antes – chutando longe – a chilena Lina Meruane tivesse escrito seu famoso ensaio Contra os Filhos, que virou livro aqui publicado pela Todavia, e tantas leitoras tivessem disponibilizado suas cabeceiras para essa pancada que se revelou naquelas pequenas páginas (é um livro que cabe no bolso). Nele, a autora questiona o custo da maternidade e lembra todas as conquistas das mulheres que ficam em risco quando os filhos aparecem. A lista de limitações é longa e Lina inclui mulheres de muitos perfis. “(…) se a dificuldade é enorme para as mães-profissionais, é ainda pior no caso das mães-artistas. ” 

O ensaio é recebido às vezes com indignação. Lina Meruane trata com ironia muitos movimentos, como o que incentiva o prolongamento da amamentação ou o que defende o parto natural. “Adoramos menstruar, adoramos ficar grávidas. São essas feministas-da-essência que se opuseram frontalmente a que as novas tecnologias médicas e os médicos mesmos participassem de algo ‘tão próprio das mulheres’ como a gestação e dar à luz. Preferiram voltar a parir em casa com a parteira de antigamente (…)”. 

Talvez seja desafiador acessar com serenidade este texto quando se é uma mulher que optou por estes caminhos, mas vejo como mérito do livro colocar esses temas na roda, tirar o silêncio imposto a eles durante tanto tempo pela impossibilidade de se fazer diferente. A amamentação só podia ser assim, o parto só podia ser assado. O cuidado só podia seguir esta cartilha, a dedicação seguia aquela outra. Havia pouca margem de manobra e estamos ganhando flexibilidade, abrindo bifurcações e expondo com sinceridade que nem tudo é tão bonito e fácil quanto parece.

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A maternidade real

Agora voltamos a Pilar Quintana. A colombiana tem duas obras publicadas no Brasil e ambas têm a maternidade no centro das histórias. Damares, de A Cachorra, é ávida por experimentar o maternar; Claudia, de Os Abismos, foi mãe e, a certa altura, entende que talvez não fosse bem o que ela queria. A personagem fica sem ar diante de todas as expectativas que recaem sobre ela no casamento e na maternidade, e a relação com a filha é marcada por um distanciamento que tem a culpa como pano de fundo. É que Claudia experimentou o que era ter uma mãe que não só demonstrava, mas às vezes dizia, com todas as letras, que teria sido mais feliz sem uma filha. Ela se vê, então, dividida entre querer fazer diferente, não querer repetir o que a mãe foi, mas sentir as mesmas coisas que ela (um clássico).

Considero Pilar Quintana um nome forte nessa conversa sobre a maternidade que tem se feito na literatura não só porque suas personagens são marcantes na decisão de ser ou não ser mãe, mas também porque o processo de criação dos livros também reflete a intensidade da experiência de ter filhos. A Cachorra foi escrito no puerpério da escritora. O primeiro rascunho do livro nasceu no celular: ela digitava enquanto amamentava, porque era o único momento em que conseguia parar. Quando eu soube disso, fiquei tempos com essa história na cabeça. 

Uma das minhas amigas que foi mãe recentemente me disse certa vez: meu filho é a melhor coisa da minha vida, mas não recomendo. Eu imaginei o que vinha naquela frase. A sobrecarga, as noites sem dormir, a dor para amamentar, a falta de liberdade, a dedicação exclusiva, a impossibilidade de se enxergar em outros papéis. A literatura tinha me colocado muito mais perto da maternidade real. Minha avó não teve a chance de escolher se queria ser mãe, passou boa parte da vida parindo. Minha mãe queria ser mãe, mas tem dificuldade para responder se escolheu ou se foi algo que aconteceu. E eu estou aqui cheia de dúvidas, mas dona do direito de tê-las.

Os livros que expõem as vísceras da maternidade estão hoje em grande número nas prateleiras das livrarias. Cada autora que aposta neste tema parece abrir caminho para outras e isso nos deixa mais sabidas, conscientes, conhecedoras das múltiplas experiências de maternidade. 

Quando apresentei o episódio do podcast Elas com Elas sobre a decisão de ser ou não ser mãe, a advogada Luciana Bento, uma das convidadas, disse que ela era a primeira geração da família a poder ser mãe e cuidar dos próprios filhos. As que vieram antes dela, também mulheres negras, tinham passado a vida cuidando de filhos de outras. Tão óbvio, e nunca tinha me ocorrido. Talvez se àquela altura eu já tivesse lido Solitária, o romance mais recente de Eliana Alves Cruz, eu não fosse pega de surpresa.  A brasileira escolhe mãe e filha como protagonistas do livro, ambas vivendo no condomínio de luxo que é local de trabalho. Não é a maternidade o cerne da obra, mas está ali, ora mais ora menos lateralmente, mas igualmente iluminadora para quem lê.

Na última edição do clube do livro do Põe na Estante, no qual eu faço a mediação, um dos participantes mencionou que sentia um boom da literatura sobre maternidade desromantizada. Sinto o mesmo. E acessar essas experiências deixa mais custosa a tal da pergunta: eu quero ser mãe? Não sei. Mas fica menos pesada a palavra final se pensarmos que mãe é uma palavra no plural e que mulher não é seu sinônimo.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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