Mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica no Brasil. São as que mais denunciam agressões. São as maiores vítimas de homicídio e feminicídio. É o que mostram dados estatísticos. As vítimas dessas agressões têm duas coisas em comum: gênero e raça. O que a frieza dos números deixa evidente é que a raça é determinante para as histórias dessas mulheres que sofrem violência.
Fernanda* é uma mulher negra de 31 anos. Viu a mãe apanhar do pai quando era pequena e não conseguiu escapar do ciclo de violência. Após sofrer agressões do marido e ver sua filha ameaçada pelo próprio pai, tentou denunciá-lo mais de uma vez, mas não conseguiu. Foi desencorajada no lugar onde deveria ter encontrado proteção, a delegacia.
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Ela procurou primeiro a delegacia da mulher. “A delegada disse que não tinha nada pra fazer por mim, que eu precisava esperar acontecer alguma comigo ou com a minha filha pra poder pegar ele. Eu respondi que até lá eu já vou ter morrido”, conta. Fernanda segue viva, mas a falta de proteção leva mulheres à morte.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2018 e 61% delas era negra (soma de pretas e pardas, de acordo com classificação do IBGE). Feminicídio é o termo que define o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero. Ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher.
A Lei Maria da Penha prevê mecanismos de denúncia, prevenção e de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Mas eles não estão conseguindo proteger as mulheres negras.
“Apesar de contarmos com políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência doméstica, os índices demonstram seu reduzido alcance para atuar na proteção e direto à vida das mulheres negras. O recrudescimento do racismo, do conservadorismo e do machismo são elementos que impactam negativamente na vida das mulheres”, diz Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, no livro Mulheres Negras e violência doméstica: decodificando os números.
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Dados do Ligue 180, serviço do governo que recebe denúncias de violência contra a mulher, localizam as mulheres negras no campo da violência doméstica. Em 2016, 60% das mulheres que relataram casos violência eram negras – os dados de 2017 e 2018 tiveram um alto percentual de mulheres que não informaram raça.
Quando cruzamos gênero com raça
A forma como a mulher negra é vista é um ponto central para explicar os dados. Pesquisadoras negras mostram que os estereótipos construídos ao longo de séculos têm influência na construção das identidades e vulnerabilizam a mulher negra, ao “autorizar” violações contra elas. É o que a socióloga e autora norte-americana feminista Patricia Hills Collins chama de “imagens de controle”: ideias que são aplicadas às mulheres negras e que permitem que outras pessoas as tratem de determinada maneira.
Dessa forma, quatro estereótipos racistas se destacam: o da mãe preta, que é a matriarca ou subserviente; o da negra de sexualidade exacerbada que provoca a atenção masculina; o da mulher dependente da assistência social; e o da negra raivosa, produtora da violência, não a receptora. Essa ideias vão, inclusive, na contramão de mitos que normalmente foram construídos em torno da imagem da mulher branca, como o da fragilidade feminina, da exigência de castidade, da divisão sexual do trabalho em que o homem é o provedor e a mulher é a cuidadora.
Ao estudar as condições de vida das mulheres negras no Brasil, a doutora em demografia pela Unicamp (Universidade de Campinas) Jackeline Ferreira Romio identificou como a raça traz particularidades na vivência da violência doméstica. “Numa categoria de mulher universal [associada à mulher branca], surgiram tópicos em torno da violência doméstica dentro da conjugalidade, como brigas de casal, ciúmes e separação. Mas no caso das mulheres negras há variação de cenários”, conta a pesquisadora.
“Elas não eram agredidas só em seu lar, mas também na rua e na casa de terceiros. Isso demonstra uma grande quantidade de violações vindas de companheiros e ex-companheiros, mas também de outros atores como vizinhos, indivíduos das relações de trabalho e um grande número de desconhecidos”, explica.
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Em sua pesquisa, Jackeline viu que a análise dos alarmantes índices de feminicídio e violência doméstica entre mulheres negras se torna mais relevante quando abordada como uma questão que não é só de gênero, só de raça ou só de classe, mas de todas elas juntas. É o que se chama de princípio da interseccionalidade.
Central dentro do feminismo negro, o conceito traduz a “forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”, como define a professora norte-americana de direitos civis e estudos raciais Kimberlé Crenshaw.
A análise interseccional aponta também que as demandas do feminismo negro dialogam com movimentos sociais de luta por moradia e acesso à terra, cada vez mais criminalizados, e questiona as políticas públicas de reparação das consequências da escravidão. Para sair da situação de violência, muitas vezes mulheres negras precisam se inserir em programas de auxílio-aluguel, de capacitação profissional, redistribuição de renda, acesso a abrigos dignos e creches para os filhos.
Preta e pobre: quando raça encontra classe social
A história de Brisa*, 27 anos, mostra como a violência doméstica funciona quando a cor da pele e a classe social se cruzam. Há dez anos, ela foi morar com o namorado, com quem tinha um relacionamento há cerca de um ano. Foi aí que começou um ciclo de controle, agressões e ataques à sua autonomia e autoestima.
Morar com ele, que tinha melhores condições financeiras, foi o jeito que Brisa encontrou de sair de casa, na periferia. “Era muito cheia, todo mundo queria sair de lá e ninguém podia. Meus tios que estavam desempregados e eu que ajudava a manter a casa, eu queria muito sair”, conta.
Mesmo com as agressões, Brisa achava que tinha que continuar com ele. “Eu ouvia que eu tive a sorte de encontrar um cara branco, que morava no centro, alto, forte, com cara de príncipe encantado que havia me notado no meio da periferia.”
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Em um dos acessos de raiva do ex-namorado, ele a prendeu dentro de casa, no banheiro, no dia em que ela iria prestar a prova do Enem. A violência doméstica a impediu de ter a chance de concorrer a uma vaga na universidade no ano seguinte.
Foi com apoio de grupos online de mulheres que ela começou a compreender que o que tinha vivido não deveria ser normal. Conseguiu sair do ciclo de violência após passar no vestibular, onde ingressou com a ajuda de cotas raciais e destinadas à estudantes do ensino público. Hoje, após reconstruir sua vida e livre da violência, Brisa trabalha como designer e é casada com uma mulher.
A situação da mulher negra no mercado de trabalho é parte do cenário que perpetua o ciclo de pobreza e violência. A taxa de desemprego entre mulheres negras é de 17%, maior do que entre as mulheres brancas (11%) e o dobro da verificada entre homens brancos (8%).
Os dados são de levantamento feito com base na média dos últimos quatro trimestres da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pelo economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.
Racismo, ponto cego da violência contra a mulher
Os estereótipos ligados às mulheres negras influenciam também no atendimento que elas recebem dos serviços de segurança e saúde ao serem vítimas de violência doméstica. Em sua pesquisa, a demógrafa Jackeline observou que o racismo institucional impacta na chance de uma mulher negra fazer valer seus direitos.
“O racismo elimina as chances das negras evitarem a morte. Esse é o ponto cego da violência de gênero e olhando a partir dele é possível evidenciar todos os pontos do sistema de dominação”, diz a pesquisadora.
Mulheres ainda enfrentam dificuldades para acessar aos serviços previstos na Lei Maria da Penha, como mostramos em reportagem. Mas no caso das mulheres negras elas ainda enfrentam o racismo. A via crucis que Fernanda fez para conseguir denunciar o ex-marido é reflexo disso.
Depois da delegacia da mulher, onde não conseguiu registrar o boletim de ocorrência, foi mandada para uma delegacia de um bairro vizinho, que também não fez o B.O. A terceira tentativa aconteceu no Ministério Público, que a mandou de volta à delegacia do bairro. “Quando cheguei e contei toda a história ao policial que me atendeu, ele insistiu pro delegado me ouvir e só assim consegui fazer a denúncia”, lembra.
A esperança da jovem era conseguir uma medida protetiva que mantivesse ela e sua filha em segurança e longe do agressor. Como não conseguiu, Fernanda procurou a ajuda do Conselho Tutelar. O órgão entrou em contato com diversos abrigos, mas como todos estavam lotados, encaminharam Fernanda para uma casa gerida por um movimento social, onde hoje ela vive com a filha.
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O Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) define esse tipo de discriminação como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”. O documento explica que ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados, em uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. “Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações.”
Exemplo de como a imagem que se construiu sobre a mulher negra tem impactos reais sobre as suas vidas é do sistema de saúde. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz analisou, entre 1999 e 2001, 9.633 prontuários de grávidas do SUS (Sistema Único de Saúde). Se constatou que as pacientes negras receberam menos anestesia no parto normal dos que as brancas. A cada 100 pacientes negras, 22% não receberam anestesia, proporção que é de 16% entre as brancas. Uma explicação para isso é o mito de que mulheres negras são mais fortes e, por isso, sentem menos dor.
Sueli Carneiro estuda como se comportam juntas opressões de gênero, raça e classe social desde a década de 1970. Segundo ela, as barreiras realizadas pelo racismo e pela pobreza fazem com que mulheres negras vivenciem no seu cotidiano múltiplas formas de violências e estresses: dificuldades de acesso aos serviços de saúde e pouca atenção às especificidades da saúde das mulheres negras; desvalorização da cultura e religiosidade africana; violências produzidas pelas forças de segurança do Estado, do crime organizado e de milícias.
A segurança pública é outro ponto alto do racismo institucional, o que é evidenciado pela escalada das taxas de homicídio de mulheres negras. O Atlas da Violência mostrou que 4.936 mulheres foram mortas no Brasil em 2017, 61% delas eram negras. E esse percentual pode ser ainda maior: o anuário não conta com os números do estado da Bahia, que não enviou as informações para o levantamento. A região concentra o maior percentual da população negra no país. A trajetória desse dado mostra uma tendência de piora grande. O número de homicídios em números absolutos cresce mais entre as mulheres negras: entre 2007 e 2017, o aumento foi de 60,5% entre mulheres negras e de 1,7% entre não negras.
Vale ressaltar a diferença entre os conceitos de homicídio e feminicídio. Homicídio é um conceito mais amplo e envolve assassinatos, seja ele por qualquer motivo. Já feminicídio é um tipo específico de homicídio, que é o praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher, o que pode envolver misoginia ou discriminação de gênero.
“Existem sobreposições de violências que fazem com que as mulheres negras tenham que resolver os seus problemas por conta própria, sem o apoio do Estado”, aponta a pesquisadora Jackeline.
Estratégia de quilombo
A escritora Patricia Hill Collins defende uma política de empoderamento para as mulheres negras como parte da solução para a violência doméstica. “É a noção de tentar se empoderar, sobreviver e se organizar na vida cotidiana, e achar pessoas que compartilhem seus pontos de vista”, disse à Revista AzMina. Ela esteve no Brasil em outubro para o lançamento em português de sua primeira obra, Pensamento Feminista Negro, mais de 30 anos após o seu lançamento original.
Ela propõe a construção de laços de solidariedade e comunidade como forma de combater condições precárias. “Para mim, radical é trazer mudanças fundamentais para as vidas das pessoas. Se você acha que é necessário mudar primeiro as instituições e só depois disso vai conseguir transformações no dia a dia, bom, não é assim que eu penso”, afirma Patricia. “Eu acho que o objetivo é fazer mudanças na vida cotidiana. Às vezes isso necessita de governo, às vezes não.”
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Foi com base numa rede de apoio que Brisa iniciou a saída da violência doméstica. No grupo online de mulheres que encontrou, ela leu relatos de outras mulheres que passaram por situações parecidas. As histórias de como essas mulheres conseguiram sair da violência e reencontraram a autoestima a despertou.
Foi também na internet que ela conheceu o feminismo, outro aliado na quebra do ciclo de agressões. “Encontrei blogueiras falando sobre feminismo e comecei a pensar qual é o meu lugar no mundo”, conta. “Foi em grupos de Facebook feministas que vi pela primeira vez mulheres interagindo com outras mulheres de uma forma saudável, com pessoas que não naturalizavam a violência. Eu via uma mulher comentando ‘ah, nossa, o cara fez isso e isso’, e aí eu pensava: ‘normal, do que ela tá reclamando?’. Na sequência via o comentário de outra mulher falando: ‘amiga, isso é inadmissível’, e aí eu pensava: por que pra ela isso é inadmissível e eu acho isso normal?”.
Na casa abrigo onde está acolhida, Fernanda também tem contado com o apoio de outras mulheres e voltou a fazer planos. Ela entrou em contato com uma tia em busca de acolhimento e trabalho e quer voltar a estudar. “Eu tenho vontade de fazer um curso técnico de enfermagem, se Deus quiser eu vou conseguir.”
As especialistas ouvidas pela reportagem destacam a urgência da incorporação da temática racial nos estudos, pesquisas e elaboração de políticas públicas voltadas para a garantia do direito à vida das mulheres negras. “Ao colocar o indivíduo que tem mais atravessamentos por violências no centro da análise, ou seja, ao olhar a experiência das mulheres negras e pobres e buscar saídas, contempla-se a sociedade de maneira universal”, explica a pesquisadora Jackeline.
Ou como diz a filósofa e ativista Angela Davis: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras.”