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cae vasconcelos
16 de outubro de 2023

Última temporada de Sex Education traz a representatividade transmasculina que faltava

Finalmente uma produção audiovisual com atores trans, cenas emocionantes, conversas sérias e narrativas reais

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Imagem sobre representatividade transmasculina. Na montagem, temos em destaque dois personagens transmasculinos da série Sex Education. A arte tem as cores rosa, roxo, laranja, verde-água e azul.
Arte: Yu Ohtsuki.

Queria começar esta coluna propondo uma reflexão: imagine a sua vida, até aqui, sem representatividade em séries, filmes, novelas e afins. Nas poucas vezes que falaram na mídia sobre pessoas como você, foram de formas equivocadas e não eram pessoas como você que vivenciavam tais personagens. Como você acredita que teria sido viver assim?

A minha vida, e de outras pessoas transmasculinas, não foi fácil. Crescemos e vivemos sem conseguir encontrar produções audiovisuais com as nossas vivências. Os raros exemplos sempre foram carregados de estereótipos e vividos por mulheres cisgêneras. Essa prática de pessoas cis vivenciando pessoas trans no audiovisual é chamada de transfake.

Com a quarta (e, infelizmente, última) temporada da série britânica Sex Education percebi pela primeira vez dilemas íntimos abordados de uma forma bonita e genuína. Não era aquela narrativa horrível da novela da Globo, A Força do Querer, em que uma mulher cis dá vida ao personagem Ivan e toda a história é construída com base no ódio ao próprio corpo.

Vendo essa nova temporada, senti uma emoção parecida com a transição de Viktor Hargreeves, personagem de Elliot Page em The Umbrella Academy. A transição de Viktor não estava prevista e precisou entrar na série após a transição de Elliot na vida real. O que, claro, não tirou a beleza e o  respeito histórico que a série deu ao personagem.

Em Sex Education, existe uma profundidade na narrativa transmasculina, e ela não é solitária. Mas antes de seguir nesse texto, é importante dizer que daqui para frente você corre o risco de ler spoilers.

Um divisor de águas

A narrativa que mais me fez chorar na quarta temporada era um personagem apresentado na fase anterior: Cal Bowman. Uma pessoa não-binária que usa pronomes neutros. O personagem é vivido por Dua Saleh, que também é uma pessoa não-binária. 

Ainda na terceira temporada, Cal chega com alguns indícios de que aprofundariam na narrativa, com diálogos sobre corporalidades, identidades, pronomes e vestimentas (já que a série é ambientada em uma escola com uniformes separados por gênero). Na última temporada, Cal apresenta mais complexidade, com dramas reais vividos por pessoas trans, principalmente transmasculinas.

Cal começa a hormonização com testosterona e fica sem saber lidar com tantas mudanças, principalmente em relação à libido. É uma cena que muitas pessoas transmasculinas que fazem uso da testosterona podem se identificar.

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Mas, até então, Cal era a única pessoa transmasculina com mais presença na série. Tivemos Layla, que tinha um papel mais secundário. Com a mudança de colégio do elenco principal, Cal ganha a companhia de Roman (interpretado por Felix Mufti, que também é uma pessoa transmasculina na vida real), um dos alunos mais populares da nova escola.

Conhecendo e se reconhecendo em Roman, Cal começa a ver possibilidades que até então não havia falado com ninguém, como a mastectomia (cirurgia de retirada das mamas). A cena em que Cal vê as cicatrizes de Roman pela primeira vez é uma das mais lindas que eu já vi em uma série. Foi impossível não chorar. O diálogo me levou até minha própria experiência: o valor alto da cirurgia era um dilema para Cal, assim como foi para mim, que precisei recorrer a um financiamento coletivo para realizar esse sonho.

Conflitos reais

Sex Education também aborda, quase que metafóricamente, a partir de Cal, um dos assuntos mais difíceis para a população transmasculina: o suicídio. 

Para se ter uma ideia, 85,7% dos homens trans já pensaram em suicídio ou tentaram contra a própria vida no Brasil, segundo o relatório “Transexualidades e Saúde Pública”, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Vemos Cal passar por esse processo de adoecimento. Elu sente que não é aceito, tem dificuldades para dialogar com a mãe e vê a questão financeira como um empecilho. Sem citar a palavra ‘suicídio’ em nenhum momento, Cal some e os amigos se juntam em uma força tarefa para encontrá-lo. Quem o encontra é um dos personagens mais queridos da série, Eric Effiong (Ncuti Gatwa). Aliás, a narrativa de Eric nessa temporada é de tirar o fôlego, mas não vou dar mais esse spoiler.

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Sexo entre pessoas trans

Outra narrativa dessa temporada é o sexo entre um casal transcentrado. Roman namora a popular Abbi (interpretada pela atriz Anthony Lexa). O relacionamento deles é cultuado por todas as pessoas do colégio e quando entram em crise todo mundo sofre junto.

Quem já assistiu algum episódio de Sex Education sabe que Otis Milburn (Asa Butterfield) tinha uma clínica de aconselhamentos sexuais na escola anterior. Na nova, aliás, ele encontra uma concorrente nesse cargo de conselheiro amoroso – aqui fica uma crítica negativa, se estenderam demais nesse duelo e poderiam ter usado o tempo para aprofundar nos novos personagens.

Mas, em um desses conselhos, Roman conta para Otis que ele e Abbi estão enfrentando dificuldades para transar. O conselheiro lembra Roman que o sexo envolve muito mais do que o ato sexual e lembra da importância do diálogo. E eis que ocorre a primeira cena de sexo entre duas pessoas trans em uma produção audiovisual. Uma pena que essa foi a última temporada porque os personagens mereciam mais episódios e narrativas.

Pessoas transmasculinas

Tem uma dúvida recorrente quando o assunto é identidades de gênero. Usamos pessoas transmasculinas porque nem todas as pessoas trans que usam pronomes masculinos se enxergam como homem trans (como é o meu caso). 

A diferença entre as identidades não é sobre quem faz o uso do hormônio e cirurgias ou não, é muito mais sobre a forma que cada pessoa se sente confortável em ser tratada. Aliás, nenhuma pessoa trans deve ser compulsoriamente levada à hormonização e aos procedimentos cirúrgicos. Essa escolha não vai validar ou invalidar a transgeneridade.

Então, quando falamos de pessoas transmasculinas, incluímos transmasculinos e, em muitos casos, pessoas não-binárias, gênero fluído e gênero neutro. Na dúvida de como as pessoas se identificam, pergunte. É a forma mais inclusiva e sensível de respeitar todas as pessoas.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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