Por Mariana Brecht*
Podemos falar de uma literatura africana de assinatura feminina? As várias literaturas do continente são repetidamente colocadas em uma só caixinha, ou melhor, um cesto de palha costurado à mão por uma mulher levando uma criança atada ao corpo por uma capulana colorida. Uma visão impregnada de exotismo e clichês é imposta à cultura africana como um todo. A literatura não é exceção. No entanto, hoje, autoras despontam e trazem à superfície uma literatura dos africanos e africanas reais e seus cotidianos.
São mulheres que compram a crédito, esperam uma ligação do filho que chegou a Cádis, conhecem a família branca do noivo e frequentam salões de beleza nos subúrbios de Lisboa. Em relatos repletos de idiossincrasias, as autoras relatam questões que só poderiam ser vividas por uma mulher africana e, contudo, universais.
Fatou Diome, Chimamanda Ngozi Adichie e Djaimila Pereira de Almeida são, respectivamente, senegalesa, nigeriana e angolana, herdeiras de uma geração de mulheres escritoras pós-descolonização. Na atual fase da literatura africana, as reivindicações são complexas e diversificadas. As escritoras narram não apenas o efeito da colonização em seus países, mas também na condição social das mulheres, nos corpos femininos.
Além disso, elas denunciam uma situação colonial ainda não superada, devido à influência econômica e cultural das antigas metrópoles. Mostram de maneiras distintas como a colonização e o patriarcado agem discretos e sorrateiros nos eventos mais banais da vida de uma mulher.
Fatou Diome e a imigração
“Quando o inverno fazia os Sahelianos sentirem falta das carícias quentes do Harmatão, eles se reuniam em casa, prolongavam as rodadas de chá e o debate ganhava vida de novo. ‘A imigração escolhida’, até os analfabetos entre eles tinham uma opinião a dar sobre a questão: os imigrantes, gado do Ocidente! – dizem por aí, uma ideia que nenhum político honesto ousava contradizer. E quando, na TV, os barões da extrema-direita gritavam, protestavam, atacavam os imigrantes, as periferias e os programas sociais que supostamente engordavam os estrangeiros, o pequeno grupo que não tinha um analista entre seus membros, não deixava de formular suas réplicas. Todos se referiam à sua situação real e à sabedoria de sua aldeia para avaliar seu lugar no tabuleiro de xadrez da economia mundial.”
Trecho de Celles qui attendent / Aquelas que esperam (em tradução livre) (2010), de Fatou Diome (tradução nossa do original em francês)
Em 2015, a escritora senegalesa Fatou Diome participou do programa de televisão francês Ce Soir ou Jamais (“Esta noite ou nunca mais”, em tradução livre) comentando a afluência de imigrantes na Europa. Ficou então conhecida por sua polêmica posição em defesa dos imigrantes e também por sua fala esclarecida.
Em seu livro “Celles qui attendent”, a autora narra a condição das mulheres cujos filhos e maridos arriscam-se em pirogas (tipo de canoa movida a remo) para tentar a vida no Eldorado europeu. Ela enfatiza as consequências da emigração para as mulheres que esperam em terra firme e lhes torna protagonistas de uma narrativa raptada pela classe política europeia.
Estas mulheres são forçadas a colocar suas vidas em modo de “espera” e viver o medo constante de se tornarem viúvas antes mesmo de desfrutar de sua condição de mulher de emigrante, status social almejado em algumas localidades do Senegal.
Muitas delas são educadas para este fim: casar-se com um homem que partirá para a Europa, uma vez que seu território violado pela colonização não oferece nenhuma perspectiva aos jovens.
É sob o ponto de vista dessas mulheres, graças aos telefonemas esparsos de seus maridos, que passamos a conhecer as mazelas dos cidadãos africanos na Europa – a dificuldade de obter um visto, a xenofobia estrutural, o medo das autoridades e os perigos da viagem.
Fatou Diome mostra que um dos principais danos da colonização para o continente africano é a persistência do sonho europeu imposto e alimentado pelo sistema colonial, mostrando as mulheres como principais vítimas deste sistema, condenadas à espera e à inação.
Chimamanda e a identidade
“Quando você é negro nos Estados Unidos e se apaixona por uma pessoa branca, a raça não importa quando vocês estão juntos sem mais ninguém por perto, porque então é só você e o seu amor. Mas no minuto em que põe o pé na rua, a raça importa. Mas nós não falamos sobre isso.”
Trecho de Americanah (2013), de Chimamanda Ngozi Adichie
Em um TED Talk, a escritora nigeriana Chimamanda conta a história de um estudante que comenta o personagem Eugene, o pai, em seu romance “Hibisco Roxo”. O estudante havia concluído: “É uma pena que todos os homens na Nigéria sejam abusivos”.
Chimamanda respondeu: “Ontem, eu li um artigo sobre um assassino em série estadunidense. É uma pena que todos os homens estadunidenses sejam assassinos”. A anedota ilustra um aspecto caro à sua literatura: o desejo de que o continente africano seja retratado como um lugar habitado por pessoas tão complexas e plurais como a Europa ou os Estados Unidos.
Os personagens extrapolam os clichês. Ao final de cada livro, sentimos que são de carne e osso, poderiam estar do nosso lado. Os clichês, segundo Chimamanda, não são mentirosos – são incompletos. Assim, quando contamos uma história baseada em clichês, escondemos uma parte da identidade desses personagens, desses povos.
Quando a narrativa do continente africano torna-se a história de um lugar onde só há guerra e fome, ela é perigosa. A guerra e a fome estão lá, mas também estão os artistas incompreendidos, os adolescentes em crise, as famílias problemáticas, os profissionais liberais, as mães solos, as brigas de amor, as intrigas políticas, o vinho de palma.
Quando usamos apenas os clichês para escrever a história de um povo, roubamos parte de sua identidade.
Djaimilia Pereira de Almeida e a memória
“Para meu grande pesar, não é aceitável declarar à polícia de fronteira que a minha pátria é o cabelo de Lúcia. Saber de onde venho, no entanto, pareceria crucial para a história do meu cabelo, rememoração permanente não de esquinas ventosas de Oeiras por volta de 1990, não de pedras e cheiros, mas de uma origem concreta, uma origem no sentido habitual.
Trecho de Esse Cabelo: A tragicomédia de um Cabelo Crespo que cruza Fronteiras (2017), de Djaimilia Pereira de Almeida
Esse livro conta a história de uma menina a partir da perspectiva de seu cabelo crespo. A personagem se refere à infância como “a época em que não me lembrava de ter cabelo”. Nasceu em Angola e passou a infância em Lisboa, onde visitava a África por meio dos salões da periferia lisboeta, fazendo tranças e alisamentos – até decidir raspar a cabeça.
O cabelo torna-se um símbolo de não pertencimento, de desconforto para si e para os outros. A autora angolana Djaimila descreve tal sentimento com a fotografia da escola de Little Rock: ela se sente ao mesmo tempo como a menina caminhando para a escola, segurando o livro-escudo e como as meninas brancas – protestando contra sua própria presença. Djaimila assim descreve seu desejo de afirmar suas raízes negras, incompatíveis com a vida em sociedade, que todo dia a força a sublimá-las.
A literatura foi o caminho que Chimamanda Adichie, Fatou Diome e Djaimila Pereira escolheram para nos revelar realidades complexas por meio de eventos simples, vidas estrangeiras em gestos cotidianos. Graças a elas e a muitas outras mulheres, as literaturas contemporâneas africanas se escrevem hoje no feminino e – sobretudo – no plural.