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22 de dezembro de 2016

15 livros incríveis lançados por mulheres em 2016 que você não ficou sabendo

O melhor da literatura nacional escrita por mulheres este ano

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Se, na política, 2016 nos deu um banho de fracasso, nas prateleiras, as manas mandaram tiro, porrada e bomba das boas. Azar no Congresso, sorte na literatura? Um ano que começa com o lançamento de Todos os contos de Clarice Lispector, ganha uma reedição de Deslocamentos do feminino da Maria Rita Kehl e termina com Uma autobiografia da Rita Lee só podia estar recheado de obras interessantes.

Boa parte delas passou despercebida pelos meios de comunicação e você, provavelmente, nem ouviu falar. É pra isso que chegou AzMina dão a letra! Vamos a algumas delas, em ordem alfabética e com trechos exclusivos: 

“Alteridade”, Maria Giulia Pinheiro, Selo do Burro

O segundo livro da escritora, jornalista e dramaturga paulistana é um poema-conto-dramático. Narra a história de elaboração de uma mulher que sofreu um estupro sobre a sociedade que normaliza a violência contra a mulher. Lançado pelo independente Selo do Burro, cada livro é numerado e conta com intervenções feitas pela própria autora sobre a capa.

PRIMEIRO CÍRCULO – 240 SEGUNDOS

Escalo até o topo de um monte de terra.
Vejo um homem de terno entrar. Paro.
Ele caminha um círculo ao meu redor.
Chove em mim.

Silêncio de vagar em ziguezagues concretos,
em meios-fios imaginários,
entre sons.
Como se boa parte do meu corpo fosse uma
biópsia

Dor ante.
Ele caminha mais um círculo em mim.
Você já sentiu isso? Nada. Completamente vazia, com
uma arma dentro de mim, apontada no meu sexo, pronta
para explodir.
Vaza.

Uma bolha de água na boca muda.
Ele caminha mais um círculo ao meu redor.
Posso ouvir ainda. O carro. Posso. Nada. Vazia.
Só a arma dentro de mim, pronta para atirar e eu
quietinha quietinha quietinha quietinha quietinha,
não atira, Moço, que saí de dentro de mim e não quero
morrer assim, só corpo, só. Quietinha quietinha,
imóvel, ninguém na mente, nem Deus. Me salva dessa,
Deus, me ilumina. Sem morte na arma. Por favor. Deus.
Sem fim pra sempre. Nesta arma quente úmida que me
invade. Sem isso.

Ele caminha outro círculo em mim.
Foi sem querer, Deus, me perdoa. Isso não. Não me
deixa morrer agora, por favor, só corpo. Não me deixa
vazar. Não me deixa guardar. Não me deixa adoecer.
Não. Quero morrer alma, Deus, e ser alma com uma
arma dentro de mim, quietinha quietinha quietinha.
Não! Não consigo.

Ele caminha mais um círculo em mim.
Deus, por favor. Sinto muito. Quietinha quietinha
quietinha. Sinto muito. (Por favor.) Não. Por favor. Faz
ele desistir dessa arma, do braço no pescoço, do sopro,
do aperto, do escuro. Por favor.
Está escuro. Um ruído. Um ruído devagar. Passa. Uma
luz. Uma fresta. Passa. Um silêncio. Um.
P a s s a d e v a g a r b e m b a i x o u m a l g o p o r n ó s .
Mais um círculo em mim.

Não me vejam, por favor, que vergonha, fui eu, desculpa, fui eu que passe aqui agora, quietinha quietinha, juro, sem ninguém aqui. Desculpa. Passo sempre, mas hoje, hoje, hoje: tudo o que veio a mim sem que eu procurasse. A arma fora de mim. A arma sempre apontada pra mim. A arma cansada mas mas mas mas mais mais mais mais mas mas mas mas mais mais mais mais forte que.

Ele caminha o sétimo círculo de mim.
Ele termina e recompõe o terno.
Ele caminha.
Ele é dele.
Ele se deita à frente, abaixo, num caixão de vidro
transparente.
Tampa e fecha.

Para de chover.

“Ana Flor da Água da Terra”, Heloiza Abdalla, Iluminuras

O livro de estreia da poeta e psicanalista Heloiza Abdalla conta a história de uma mulher na travessia do tempo em 37 poemas íntimos e fluidos.

“As lendas de Dandara”, Jarid Arraes, Editora Cultura

Como teria sido a história de Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi? A escassez de dados sobre ela na historiografia oficial levou a escritora e cordelista cearense Jarid Arraes a criar dez contos sobre a guerreira, ilustrados por Aline Valek. Misturando ficção, história e um toque fantástico, Jarid cria uma protagonista negra, forte e heroica, valorizando a cultura afrobrasileira e a memória de Dandara.

“A vida invisível de Eurídice Gusmão”, Martha Batalha, Companhia das Letras

O primeiro romance da jornalista e editora recifense radicada no Rio de Janeiro Martha Batalha narra a memória de mulheres invisíveis, criadas apenas para serem boas esposas e mães. A história se passa na capital carioca nos anos 1940. Guida Gusmão desaparece da casa dos pais sem deixar notícias, enquanto sua irmã Eurídice se torna uma dona de casa exemplar. Mas nenhuma das duas parece feliz em suas escolhas.

“Beijos no chão”, Dani Costa Russo, Direito de Expressão

Jornalista capixaba radicada em São Paulo, Dani lança seu primeiro romance de forma independente. O livro conta a história de uma jovem mulher cuja vida poderia ser considerada a dos sonhos, mas é espancada regularmente pelo marido. A protagonista acredita que vive interagindo com espectros, redefine o amor e entrega-se a uma apatia quase irritante diante da violência que sofre.

“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, Elvira Vigna, Companhia das Letras

Escritora, jornalista e desenhista, Elvira Vigna nasceu no Rio de Janeiro em 1947 e hoje vive na capital paulista. Com extensa produção literária, reconhecida por prêmios como o Oceanos, lança em 2016 seu décimo romance. O livro narra o encontro de uma designer e um técnico de informática. Ele fala sobre seus encontros com prostitutas, enquanto ela escuta e preenche em pensamento as lacunas da narrativa. Um jogo literário de traições e insinuações, relacionamentos, poder, mentiras e imaginação.

“da perda à pedra a queda é livre”, Anna Zêpa, Demônio Negro e Douda Correria

Primeira publicação em prosa da autora, o livro reúne 10 contos curtos, ácidos e cortantes, que têm a perda como fio condutor. Anna nasceu em Natal e formou-se em publicidade, mas veio para São Paulo e estabeleceu-se como atriz e escritora. Tem mais dois livros de poesia publicados pelo Selo do Burro.

Crematório

Álcool, água marilena, querosene, combustível nuclear, não sei. Não sei como ela tacava fogo naquilo. Não sei se usava isqueiro. Fósforos, talvez. Só sei que em cinco minutos a fogueira estava feita, mordendo o chão. Por que danado ela fazia um negócio daquele? Os viventes em geral sobrevivem a uma diversidade de acontecimentos extravagantes. Isso eu também sei. Pois bem, na minha lembrança, sobrevivi a sessões de cremação de cintos e cuecas. Na garagem da casa do meu pai. Ficávamos lá numa espécie de ritual, esperando os objetos, novíssimos, converterem-se em cinzas. Cintos marrons, cuecas brancas. Geralmente era dia dos pais. Geralmente eram nossos os presentes. Mas será que isso pertence a alguma religião que eu não conheço? Ou cintos e cuecas nascem mortos? Questões passeavam como foguetes na minha mente, mas as respostas sumiam em meio a fumaça. Meu pai olhava tudo. Com a mão na boca, chorava a lama seca dos restos. A gente só fitava. O ritual era comandado pela minha madrasta. E só ela, fumegante, sonorizava raivas.

“Furiosa”, Ana Rüsche

No ano em que completa dez anos de produção literária, a autora apresenta Furiosa, uma edição comemorativa que reúne seus quatro livros de poemas (três reeditados e um inédito). Paulistana formada em Direito e Literatura, Ana está sempre envolvida em questões sociais da cidade, feminismos e em prol da voz da mulher. Assim como muitas de suas obras, o livro está em domínio público e pode ser lido on-line ou baixado na íntegra neste link.

o corpo é um corpo

o corpo é um campo

de batalha

se diz faca diz faça

se diz toque diz toca

esconde encolhe esconde 

meu campo é um campo

de batalha

de apanhadores 

e quando se dirá

amanhecer flauta

águas-vivas líquens

piratas areia quente

e cavalos grávidos de mar? 

: mais que nada se dirá

quando

um corpo for um corpo

um corpo for um corpo

um corpo é um corpo

um corpo é um corpo

“Negra Nua Crua”, Mel Duarte, Editora Ijumaa


Integrante do coletivo Poetas Ambulantes e do Slam das Minas, a ativista e produtora cultural paulistana Mel Duarte lança seu segundo livro de poemas em meio às fervilhantes lutas do ano. Envolvida com a literatura independente desde 2006, quando conheceu o movimento dos Saraus nas diversas regiões de São Paulo, usa a criação literária como arma contra o racismo e o machismo, dando voz às angústias e prazeres do cotidiano da mulher negra no Brasil.

“RaimundA” (Inverno-Primavera 2016), várias autoras

A revista Raimundo – Nova literatura brasileira abre as portas para novos autores e atoras, entre contistas, poetas, tradutores e ensaístas. Publicada desde 2014 em edições trimestrais on-line e gratuitas, “pretende acolher obras que pouco encontraram abrigo nos ainda apertados espaços do mundo editorial brasileiro”. Esta edição especial publica apenas mulheres, reunindo produções diversas de autoras nacionais e internacionais.

“Ruído branco”, Ana Carolina, Editora Planeta do Brasil

Famosa como cantora, Ana Carolina mostra uma faceta desconhecida dos fãs: poeta. Este livro de capa dura está recheado de telas e fotos exclusivas do seu cotidiano misturadas a mais de 50 poesias, prosas e letras inéditas escritas ao longo da sua vida.

“Senhoras Obscenas – Antologia Poética”, várias autoras, Editora Benfazeja


Organizada por Adriana Caló e Graziela Brum, a antologia reúne mais de 50 poetas brasileiras, trazendo para o papel o trabalho de valorização da literatura feita por mulheres realizado pela comunidade on-line de mesmo nome. Para as autoras, “Senhoras obscenas não questiona a relação de gênero quanto à produção literária, por entender que cada escritor é único e independe de seu gênero na produção artística. O que de fato se busca são as mesmas oportunidades para mulheres e homens dentro de um prisma artístico e cultural”.

“Tatuagem” [mínimo romance], Geruza Zelnys, Editora Patuá


Contemplado com a bolsa Proac de 2015, o romance é seu segundo livro publicado pela Patuá. Ainda este ano, lançou 9 janelas paralelas & outros incômodos, finalista do Prêmio Sesc na Categoria Contos de 2015, que reúne narrativas breves, fortes e certeiras. Doutora em Teoria Literária, a autora cheia de livros no prelo trabalha como professora de literatura e escrita literária.

“triz”, Lubi Prates, Editora Patuá

A busca pelo pelo seu lugar, as distâncias e deslocamentos, o amor e o desamor. São os temas que compõem o segundo livro de poemas da autora paulistana. Editora de revistas literárias e tradutora, Lubi mora, atualmente, em Curitiba, onde media os encontros do grupo “Leia Mulheres”.

trinta e cinco dólares
um corpo que
estabelece o limite
com o outro

ser

um corpo que
é membrana e
ampara

a personalidade

um corpo que
guarda os escapes
da mente
assim como
o contrário:
tudo que acontece
no corpo chega
às camadas psicológicas.
como pensar um corpo
que é tocado
dominado
invadido

destruído:

é saber o corpo
de uma mulher:
mutilado
estuprado
vendido
na África,
todo clitóris
é cortado
para que
nenhuma        mulher
sinta prazer.
na África, também
as meninas                   ainda meninas
apertam seus seios
para que pareçam
meninos e
não sejam invadidas.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:
no Brasil,
trinta        e            três
homens
estupraram uma mulher.
ainda, no Brasil, a cada
onze minutos
uma mulher
é estuprada
mas não fala-se
a respeito
parece natural.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:
a cada ano, dois milhões
de mulheres
são vendidas
cada mulher custa
trinta     e                  cinco
dólares.
eu não estou
à venda mas
o que eu custo:
trinta      e                   cinco
dólares.

como pensar um corpo

como saber o corpo
de uma mulher:

apenas carne.

“Vênus em escorpião”, Luiza Mendes Furia, Editora Patuá

Paulista de Caçapava, a jornalista, poeta e tradutora Maria Luíza Mendes Furia nasceu em 1961. Publicou sua primeira obra aos 16 anos de idade e nunca mais parou de escrever. Seu mais novo livro traz poemas que investigam a natureza, a saudade, o sexo e, é claro, muito erotismo.

XIII
Escrevo o que me vem ao pensamento
Para falar de ti esqueço a hora
Amor, amada minha, flor do tempo
girando entre os ponteiros da demora.
Estive à tua espera e este momento
é a síntese da morte que estertora
Amor meu, nego a morte, vou constante
em busca desse amor a vida afora
Os meus minutos são teus, rosa silente,
prenunciando pétalas ardentes
que quero aspirar nas profundezas
Depois chegar ao cerne docemente
roçando a língua quente com destreza
até que tu te entregues e floresça.

Se você é uma escritora ou tem alguma sugestão de autora para apresentarmos, envie e-mail para bruna.escaleira@azmina.com.br e nos conte tudo 😉

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