Em maio deste ano, a Youtuber e empreendedora Ana Paula Xongani compartilhou em um vídeo de cortar o coração o racismo vivido por sua filha Ayo, de apenas 4 anos. Ela relata o início de um “fenômeno” que a academia chama de solidão da mulher negra, que deixa marcas profundas que vão contribuir para toda a cadeia de violências que atingem mulheres negras.
Pouco antes, um vídeo em que uma criança negra (e aparentemente imigrante) é hostilizada por outras crianças em um parquinho na Espanha escancarou o racismo e a xenofobia na Europa.
Ambos os vídeos viralizaram e vi centenas de pessoas conhecidas manifestando sua revolta com essas situações de racismo evidente. A maioria dos comentários ia na linha do “ninguém nasce racista”, “isso é culpa dos pais” e “que tipo de educação essas crianças estão recebendo”.
O desabafo da Xongani mexeu especialmente comigo, de um jeito em que fiquei realmente muito abalada. Chorei (o que não é tão comum para mim mesmo quando estou muito chateada ou emocionada), passei algumas horas no travesseiro pensando sobre o assunto, imaginando a dor dela, da filha e como eu reagiria se fosse comigo. Doeu bem mais do que o “normal”. Fiquei pensando que pode ter sido por que virei mãe, mas eu acho mesmo que foi um pouco de culpa.
Em uma roda de conversa sobre feminismo negro da qual participei, uma pesquisadora e professora de história apresentou seu trabalho sobre os 13 anos da lei 10.639/2003[1] e seu impacto na vida e autoestima de adolescentes negras. O trabalho brilhante trouxe uma perspectiva muito interessante, e o debate que se sucedeu foi ainda mais rico.
Quando, em determinado momento, uma pedagoga e militante presente destacou a importância de que as mulheres negras briguem para que a lei seja cumprida também nas escolas particulares e para que crianças negras parem de ser humilhadas e excluídas em um ambiente que deveria ser sua referência de mundo, minha garganta trancou e eu tive que conter a emoção e o choro.
Me lembrei do vídeo da Xongani. De como ela tem pressa de mudança.
Quantas vezes ouvi de amigas que têm filhos em idade escolar e que fizeram algum comentário racista (sobre a empregada, o amiguinho, o porteiro) “que criança não sabe dessas coisas”, que “é sem maldade”.
Me lembrei de amigas negras e seus relatos de como as professoras se recusavam a pentear seus cabelos, e sentindo a dor daquela mulher dando seu depoimento pensei: “Não! Essa briga não deveria ser sua! Essa briga é minha!”
Eu, mulher e mãe branca, devo assumir a trincheira para que a escola do meu filho assegure um ambiente diverso, antirracista e inclusivo! Eu devo brigar para que se cumpra a lei 10.639/2003 para que as crianças tenham acesso a uma outra perspectiva histórica e conheça a riqueza cultural da nossa ancestralidade não europeia.
Meu papel
É meu papel também brigar para que meu filho tenha acesso a uma escola em que as pessoas negras não estejam em posições de subalternidade, mas também sejam professores, pedagogos, diretores, consultores, e que a escola tenha uma atitude proativa no assunto.
Eu tenho a obrigação de fazer o “papel de chata” e cortar piadinhas no grupo de pais, fazer o recorte de raça nas discussões e panelinhas. Porque “ele é só uma criança, não vê raça”, além de não ser verdade, não previne que a outra criança veja raça quando é ofendida, machucada ou excluída, tendo sua autoestima comprometida em uma fase de construção de autoimagem tão significativa.
É minha obrigação enquanto mãe de uma criança branca falar com meu filho sobre raça, classe e gênero, que geram opressões de forma interseccional – com bem teorizam as acadêmicas feministas negras.
É meu dever moral enquanto ser humano e feminista explicar para o meu filho sobre os seus privilégios. Mais: é minha obrigação ensiná-lo, ao mesmo tempo em que aprendo eu mesma a abrir mão, desses privilégios em prol de uma sociedade mais justa. Temos que ser proativas na briga pela representatividade e diversidade nos ambientes que eles frequentam.
O racismo é estrutural e é sobre poder. Nascemos racistas ao nascermos brancos uma vez que, querendo ou não, gozamos de privilégios que só existem porque o negro é oprimido de diversas formas. Porque racismo não é apenas sobre indivíduos.
A negação de que somos todos parte de um dos países mais racistas que existem está dizimando a juventude negra.
Crianças podem ser racistas sim! Racistas, machistas, classistas… É necessária uma vida para desconstruir esses preconceitos. E ignorar essa realidade apenas atrasa o processo.
Temos que parar de tratar essas questões como tabu e de fazer discursos conciliadores e vazios como #somostodoshumanos para que eles entendam que há sim uma diferença enorme entre ser branco e negro nesta sociedade, e que essa diferença custa muitas vidas. Que se não fizermos nada, isso nunca vai mudar. E que é papel dele ser parte dessa mudança tão urgente. Não subestimem a compreensão das crianças!
Racismo não é uma pauta apenas de pessoas negras. Desconstruir o racismo é – ou deveria ser – algo que interessa a todos. Ele é responsável pela perda de muitas vidas jovens, pela sensação de medo do “outro” e por sua desumanização. Precisamos, no mínimo, assumir a posição de questionamento em nossos próprios espaços.
Sororidade é também dar um descanso pra a mana negra que precisa estar o tempo todo lutando, brigando e demandando seu direito de EXISTIR!
Como contribuir com a questão?
Primeiro passo é pensar sobre isso. Pense sobre sua branquitude. Quando você percebeu que era branca? Aliás, você já percebeu que não é universal e que o seu conceito de “ser mulher” não é o único possível? Se quiser saber mais sobre o meu processo, escrevi sobre ele aqui!
Segundo: leia, estude e se aprofunde nas questões raciais e comece a observar a sua realidade e a de seus filhos. Quem são as pessoas negras com as quais ele convive? Qual a relação dele com essas pessoas? Ele tem colegas negros? Ele convive e interage com essas crianças? Se não, por que? Qual a posição da escola em relação a isso? Do clube? Como é a interação no parquinho, na praça?
Terceiro passo: apresente a ele a produção cultural de pessoas negras. Autores e autoras (se for mulher melhor ainda!), desenhos, filmes, músicos. Depois apresente também cientistas, políticos, astronautas e tudo que fizer sentido de acordo com as áreas de interesse de seu filho. Perceber um mundo diverso e possível para todas as pessoas é um passo importantíssimo na construção do caráter de pessoas verdadeiramente inclusivas.
Por último, mas não menos importante, valorize e incentive relações de amizade e afeto entre seu filho e pessoas diferentes dele. Negras, com limitações físicas ou psíquicas, de classes sociais diversas ou com culturas e religiões diferentes para que ele vá naturalizando e humanizando todas as formas de SER! O racismo, assim como qualquer opressão estrutural, é pautado na desumanização do sujeito.
E nunca, jamais, passe pano para atitudes racistas (ou machistas) de seus filhos achando que “eles não sabem ou não entendem” o que está acontecendo.
Que saibamos que a culpa de ter acontecido o que aconteceu com Ayo, a filha de Xongani, e com a criança no parquinho na Espanha é também nossa. Os racistas odiosos que denunciamos indignadas ao compartilhar os vídeos também somos nós e serão nossos filhos se não fizermos algo.
A Ana Paula Xongani tem pressa de mudança por um mundo melhor e eu também: tenho pressa e tenho RESPONSABILIDADE nessa mudança!
Hoje, dia 25, se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, o dia também é em homenagem a Tereza de Benguela, líder quilombola que se tornou rainha, resistindo bravamente à escravidão por duas décadas. Haverá uma série de atividades programadas para este dia que podem contribuir nesse processo de desconstrução do seu próprio racismo. A Marcha das Mulheres Negras de São Paulo realiza ato no centro de São Paulo hoje. Confira aqui o evento. Bora somar?
[1] A Lei 10.639/2003 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”