Estamos no carro e Cacá me mostra na rua uma parede com um lindo grafite:
– Sabe qual o nome disso filho? É grafite. Lindo, né?!
– A mamãe falou que não pode pintar na parede!
– ….
– Cacá também gosta de pintar na parede.
Momentos como este são comuns na maternidade e na paternidade e eles nos expõem ao quanto muitas vezes somos incoerentes em nossa argumentação com nossos filhos. Ao mesmo tempo, também percebo o tempo inteiro o quanto ele me observa e aprende pelo exemplo muito mais do que com qualquer palavra ou discurso.
Eu realmente não me choquei quando Cacá soltou seu primeiro “puta merda” quando bateu o joelho e não me sinto em condições de dizer que ele não pode falar palavrão. Se eu quero que ele não tenha determinado hábito, me parece muito mais simples eu mudar também os meus. No caso do palavrão nem tentei, mas com a alimentação, por exemplo, tem sido um exercício contínuo e de muitas vitórias pessoais.
E dessa reflexão materna eu quero expandir para o quanto somos incoerentes o tempo inteiro nas nossas vidas, mesmo esperando coerência do outro.
Vencer a discussão se tornou o mais importante. A coerência argumentativa vem em segundo plano. A retórica não é mais relevante, mesmo que muitas vezes com a minha linha de raciocínio eu esteja dando munição para os mesmos discursos opressivos que eu gostaria de abolir.
Acredito que nenhuma discussão deve ser ganha a qualquer custo
Argumentos ruins, tóxicos ou que reproduzem opressões podem não te pegar na entrada, mas te pegam na saída.
Tenho insistido nisso não é de hoje, já escrevi sobre na época do Mensalão, do impeachment e também sobre vários assuntos feministas.
Um exemplo do que estou falando foram os argumentos usados no julgamento do intervalo de 15 minutos concedido às mulheres antes das horas extras. Nele, o Ministro Relator (Dias Toffoli) entendeu por manter (acertadamente) o intervalo, porém sob o argumento de que a Constituição admitiu a possibilidade de tratamento diferenciado levando em conta a “histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho”; a existência de “um componente orgânico, biológico, inclusive pela menor resistência física da mulher”; e um componente social, pelo fato de ser comum a chamada dupla jornada – o acúmulo de atividades pela mulher no lar e no trabalho – “que, de fato, é uma realidade e, portanto, deve ser levada em consideração”.
Esta linha de argumentação está ERRADA, reforça e naturaliza a desigualdade de gênero e ainda dá fundamento para, em outros casos, a condição física e social da mulher ser usada contra nós.
Caso Damares
Muitos amigos de esquerda compartilharam notícias zombeteiras e memes sobre a nova ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, ter visto Jesus em uma goiabeira. E por mais que eu tenha zilhões de discordâncias com esta cidadã, por mais que eu saiba que a religião que ela professa tem sido usada como pano de fundo para todo tipo de abuso e discriminação, zombar da fé de alguém é intolerância religiosa. Simples assim!
Não posso zombar a pessoa ter visto uma aparição de Jesus e depois ir ao terreiro me consultar ou tomar passe no centro espírita.
Ainda que eu fosse ateia, não é coerente zombar da fé de alguém e depois fazer discurso de estado laico e contra a intolerância religiosa
Além do mais, a quantidade de críticas pessoais (ad hominem) a ela são muito maiores do que aos outros ministros indicados pelo novo governo.
O novo chanceler Ernesto Araújo acredita em coisas muito bizarras e que impactam diretamente nossa política externa. O Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, quer ensinar criacionismo nas escolas. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é réu em uma ação por crime ambiental.
Leia também: Estado e religião, uma relação tão antiga quanto promíscua
O que Damares fala não é nada que já não tenha sido falado (e aplaudido) por muitas pessoas. De todos os homens que já falaram sobre aborto, ela está bem longe de ser a que tem o discurso mais bizarro, mas ainda assim é muito mais criticada.
É machismo que fala, né?!?
Além disso, no vídeo em questão Damares relata que dos 6 aos 8 anos sofreu abusos sexuais e aos 10 planejou se matar, subiu em um pé de goiaba e lá viu Jesus.
Uma criança quer tirar a vida por conta do abuso que sofreu aos 6. Se apega à sua fé e não se mata e hoje ela tem crenças que são resultado dessa sua vivência. Isto não é motivo de chacota.
Eu já fui uma criança vítima de abusos sexuais que queria se matar. Eu já tentei me matar e ter uma fé na época foi muito importante para mim. Fé esta que hoje já não me contempla mais, mas minhas vivências também tiveram impacto na mulher que me tornei e na forma como hoje luto pelas minhas causas.
Ataques
Estão dizendo que a ministra Damares está sendo manipuladora, que está dizendo isso para aparecer e para justificar suas ideias e políticas violentas.
Nada de novo sob o sol: “manipuladora”, “está exagerando”, “está fazendo isso para chamar atenção” são todas coisas que sempre são ditas a uma criança vítima de abuso sexual. E às pessoas com ideações suicidas também.
E não, eu não estou dizendo que ter sido vítima de abuso sexual ou de qualquer outra coisa a isenta de críticas ou da problematização ao seu discurso.
Existe um abismo entre usar essa “desculpa” para se isentar de críticas e não fazerem piadas ou questionarem a questão de fé dela. Uma coisa é totalmente diferente da outra e tudo isso só acontece porque a discussão infelizmente é o tempo inteiro pessoalizada, assim como os ataques.
O que Damares viveu em momento nenhum a isenta da responsabilidade por suas ações, especialmente políticas, mas isso não é razão para que pessoas que defendem a tolerância religiosa acharem “ok” zoarem alguém que acredita ter visto Jesus na goiabeira ou seja lá aonde for, ainda mais nessa situação específica. Principalmente considerando que ela não estava no vídeo em questão falando na sua posição enquanto ministra e sim em um evento de cunho religioso.
Deveria ser um ministro umbandista reprimido ou zombado por incorporar entidades em um terreiro? Como se dá isso de separar o que é legítimo e o que é passível de zoeira quando se trata de fé?
Para mim a separação é clara: política e religião não se misturam e tudo que ela disser sobre fé que afete e impacte a forma como ela fará política será criticado. Ataque pessoal à vivência mística dela é outra coisa e eu também não passo pano pra quem, na esquerda, está legitimando sua insensibilidade ao fato dela ser quem ela é.
Precisamos urgentemente despersonalizar os debates e sairmos do posto em que a pessoa é o discurso todo e vice-versa. Se a incoerência é de alguém que eu admiro eu aceito, mas se é de alguém que está no espectro oposto das minhas crenças isso legitima todo e qualquer ataque, ainda que injustificado?
Este não é o exemplo que quero dar ao meu filho.
Eu quero que meu filho seja esse espelho para mim sobre a minha coerência e também sobre a minha incoerência. Que, olhando para ele e seus questionamentos tão óbvios e transparentes, eu possa me lembrar de que pau que dói em Chico, também dói em Francisco, ou: argumentação coerente importa!