Talvez você já tenha ouvido falar sobre plano de parto, um documento escrito por gestantes com intuito de orientar sobre fisiologia e procedimentos em um trabalho de parto, parto e pós-parto. É uma ferramenta que pretende colocar pessoas em melhor condições de diálogo com cuidadores, prevenindo situações de violência obstétrica e práticas danosas como a episiotomia (corte realizado no períneo (entre a vagina e o ânus). Tem ainda a potência de impactar no necessário diálogo entre a atenção primária, onde se acompanha o pré-natal e maternidades. O plano de parto é recomendado por inúmeras organizações e instituições, fazendo parte inclusive da caderneta brasileira de gestante.
Pensando na temática de saúde reprodutiva de forma mais ampla e como essa ferramenta de construção de autonomia é potente e estratégica, poderíamos pensar em um plano de abortamento? Para que pudéssemos falar de fisiologia, possíveis intervenções e sinais de alerta? Uma ferramenta que pudesse ser difundida entre as pessoas, profissionais de saúde e instituições? E que pudesse proteger pessoas de violências institucionais e do risco de um aborto inseguro?
Aborto é questão de saúde pública, e por quê?
Um problema de saúde pública é um problema que tem alta taxa de ocorrência, impacto importante na saúde e é prevenível. O aborto inseguro se enquadra nessas três condições. Segundo Boletim Epidemiológico nº47 do Ministério da Saúde, estima-se que pelo menos 6,9 milhões de mulheres sofrem complicações de um aborto a cada ano em todo o mundo. As situações podem variar de leve (sangramento leve) a grave (sepse ou danos aos órgãos internos). Abortos que resultam em complicações graves ou morte estão associados a procedimentos inseguros.
Então fica a questão: como orientar a prevenção de abortos inseguros e acessar procedimentos seguros? Como orientá-las sobre seus direitos e contra violências institucionais? Precisamos tratar dessa temática com as prerrogativas da tradução de evidências científicas, para que estejam mais disponíveis para a população, boa comunicação sobre riscos e construção conjunta de plano terapêutico. É a partir dessa premissa que vamos enumerar alguns pontos do trajeto para construção de um plano de abortamento.
Planejamento e prevenção
Esse plano de abortamento pode ser escrito do próprio punho, mas também poderíamos pensar um documento que reunisse todas as informações necessárias. No Brasil, além das situações de gestação em decorrência de violência sexual, casos de fetos anencéfalos e de risco de morte à quem gesta também dão direito ao aborto legal e devem ser orientados por profissionais de saúde. Aqui vamos utilizar como exemplo uma situação de gestação decorrente de estupro, para orientar 15 pontos importantes.
1- Diante de atraso menstrual é importante realizar exame para confirmação da gestação e buscar um serviço de saúde. Você pode procurar a Unidade Básica de Saúde, que poderia te indicar um serviço de aborto previsto em lei ou buscar diretamente o serviço de interrupção legal da gestação mais próximo da sua cidade, no entanto, essa nem sempre é uma tarefa fácil. Infelizmente a informação sobre esses serviços ainda é escassa, mas o https://mapaabortolegal.org é uma tentativa de reunir essas informações. A página foi atualizada em 2022.
2- Descobrir se há dia específico para acolhimento dessas situações pode evitar ser atendida em um plantão de emergência onde é possível sofrer novas violências ou mesmo ser desencorajada a realizar a interrupção. Se você tem bom vínculo com enfermagem, médicos/as de família, eles podem ser uma boa ponte. Se você conhece um grupo de defesa dos direitos de mulheres, meninas e pessoas com útero, esse também pode ser um bom caminho.
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3- No serviço de saúde, você será ouvida por equipe multiprofissional da ginecologia, psicologia, assistência social e enfermagem regulamentada pela Portaria n.º1508/2005. NÃO É NECESSÁRIO Boletim de Ocorrência para realização de aborto previsto em lei. Portanto, fique atenta! Também não precisa de autorização judicial, nem de laudo do IML (Instituto Médico Legal). A denúncia da situação de violência sexual é um direito e deve ser estimulada, mas nunca obrigatória. Profissional de saúde não é polícia, nem juiz, deve estar ali para cuidar de uma situação de saúde e reduzir o dano de um aborto inseguro!
4 – Essa mesma Portaria regulamenta o passo a passo para acessar o aborto legal e também os termos que devem ser assinados pela pessoa gestante. Inicialmente, é realizada uma escuta sobre o ocorrido, a pessoa relata para a assistente social o que aconteceu e escreve o Termo de Relato Circunstanciado, explicando o que aconteceu e a data da violência. Não é obrigatório ter o dia exato da data da violência, inclusive porque diante de um trauma é possível não lembrar ou até mesmo se confundir.
5 – Em seguida, será feito um ultrassom para confirmar que a gravidez está dentro do útero (porque ela pode ser ectópica – estar nas tubas uterinas), que ela é uma gestação viável (porque ela pode não ter se desenvolvido – anembrionada) e também para datar a idade gestacional e comparar com a data da última menstruação. Esse processo deve ser agilizado e realizado de preferência no mesmo dia das consultas com os demais profissionais do serviço.
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6 – Você passará pela consulta com a psicologia, onde também deve assinar outro termo que é o Termo de Responsabilidade, onde alega que está falando a verdade sobre a ocorrência de violência. Passada a assinatura do termo, você irá para a consulta com a ginecologista.
7 – Nessa etapa se procederá à assinatura do Parecer Técnico, onde o profissional alega a compatibilidade entre a idade gestacional e a data da violência. Situações de violência crônica, situações onde a paciente não consegue lembrar a data da violência ou se confunde, entre outras situações, deveriam dispensar essa etapa, uma vez que não é possível afirmar com certeza essa compatibilidade quando a paciente está submetida a violências em diferentes datas.
8 – Depois de passar por toda a equipe multiprofissional e confirmada a autorização do procedimento, a paciente e a equipe assinam ainda o Termo de Aprovação do Procedimento pela Interrupção da Gestação e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
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9 – Você deve ser informada das opções disponíveis para interrupção da gestação conforme a idade gestacional, sendo que não há limite de idade gestacional para realização de aborto em nenhum dos casos de aborto legal. No nosso país, o que faz com que algumas pacientes cheguem com gestações avançadas a serviços de saúde é a descoberta tardia da gestação. Isso acontece principalmente em casos de crianças ou em razão das dificuldades impostas pelos próprios serviços, que demoram a encaminhar ou dão informações erradas às pacientes, como, por exemplo, dizer que precisa de autorização da justiça.
10- Há 4 técnicas possíveis para uma interrupção que dependem da idade gestacional:
→ Até 12-14 semanas: aborto farmacológico ou medicamentoso – realizado com misoprostol, com 800mcg intravaginal ou sublingual. Pode ser necessário repetir a dose após 3 horas. A OMS recomenda que o aborto farmacológico seja realizada com Mifepristona e Misoprostol, mas no Brasil não temos Mifepristona, droga que ajuda a aumentar a eficácia do aborto farmacológico.
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É importante que você saiba que até a 12ª semana de gestação, segundo a OMS, seria possível realizar uma interrupção em casa recebendo medicações (misoprostol e mifepristona ou apenas misoprostol) e orientações por Telessaúde, através do serviço de saúde, prática presente em outros países ou mesmo com medicamentos dentro do hospital. No Brasil infelizmente poucos serviços realizam aborto farmacológico por Telessaúde.
→ Até 12-14 semanas: aspiração Manual Intrauterina (AMIU), técnica recomendada pela OMS até 14 semanas, mas no Brasil a maior parte dos hospitais fazem apenas até 12 semanas, em razão das cânulas disponíveis em nosso país. É possível a realização ambulatorial com anestesia local no colo do útero ou internação para sedação. Com essa técnica temos um resultado de sucesso do procedimento de mais de 99% e pode ser dada alta no mesmo dia se não houver complicações do procedimento. Antes da realização do AMIU, em especial entre 9 e 14 semanas, é necessário a preparação do colo uterino com Misoprostol.
Discuta com profissionais a dose recomendada porque a prática de deixar pacientes em jejum por horas consecutivas e múltiplas doses de misoprostol é inadequada e violenta. Bastaria uma dose de misoprostol aplicado por via vaginal para proceder ao esvaziamento uterino
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→ Acima de 14 semanas: deve ser realizado aborto farmacológico com Misoprostol, porém com doses menores de 400 mcg a cada 3 horas. Outra técnica possível é a Dilatação e Evacuação, que vai de 14 a 26 semanas – e é a técnica cirúrgica recomendada pela OMS para casos com essa idade gestacional, porém ainda pouquíssimo difundida no Brasil.
→ A maioria dos hospitais em situações acima de 12-14 semanas acaba realizando a curetagem, mas é importante saber que essa é uma técnica obsoleta e não mais recomendada pela OMS. Você pode dizer que não deseja realizar a curetagem, caso essa seja a única técnica oferecida. Para isso é possível, mesmo em locais que não tem Dilatação e Evacuação, realizar o aborto farmacológico, e manter mais tempo de internação para monitorar por meio de ultrassom se o aborto foi aconteceu, ou realizar um AMIU após o aborto farmacológico para finalizar o esvaziamento da cavidade uterina.
Sempre que possível deveria ser eleita a realização de esvaziamento com AMIU – aspiração manual intra-uterina (em comparação com a curetagem) por ter menos riscos de complicação (menos sangramento, menos risco de infecção e menos risco de perfuração do que com a curetagem, método obsoleto que infelizmente continua sendo feito). Converse sobre a possibilidade de ser realizado a AMIU.
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11- A recuperação após a AMIU costuma ser rápida e a alta hospitalar pode acontecer algumas horas depois. Recomenda-se um repouso de 3 a 7 dias para os quais você deve receber um atestado médico que não precisa conter CID. O sigilo médico é seu direito.
12- Se você está sem método contraceptivo adequado e deseja ter acesso ao DIU de cobre, esse pode ser um momento adequado para já sair do hospital com contracepção de longa ação. Converse com a equipe sobre essa possibilidade. Alguns municípios também disponibilizam DIU hormonal e Implante contraceptivo, pergunte sobre eles e peça para o profissional te explicar as diferenças em termos de efeitos para que possa fazer uma escolha autônoma e esclarecida.
13 – Depois do aborto é normal ter sangramento, e que ele esteja em diminuição, por até 3 semanas. Não é normal ter febre após o procedimento, nem dor abdominal intensa. O corrimento com odor também deve ser entendido como um sinal de alarme para retorno ao serviço de saúde.
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14- Os serviços que realizam o procedimento devem dar orientações sobre sintomas e, em geral, agendam consultas de retorno com 15 dias após e fazem o acompanhamento até 6 meses.
15 – Caso você se depare com alguma negativa para acessar o seu direito ao aborto previsto em lei (exigência de B.O., número de consultas acima do que as descritas no passo a passo, desconfiança do seu relato, dentre outras barreiras), é possível: realizar uma denúncia nas Ouvidorias das Secretarias de Saúde, acionar o Ministério Público do seu estado ou, então, buscar a Defensoria Pública. Organizações feministas que lutam pela garantia dos direitos reprodutivos de mulheres, meninas e pessoas que gestam também podem te ajudar com orientações de como prosseguir.
Seria muito importante cobrarmos que os serviços de aborto cadastrados no SUS tivessem seus protocolos transparentes para que a sociedade civil possa cobrar por seu efetivo funcionamento.