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O que o Congresso Nacional pensa sobre aborto?

Pesquisa d’AzMina e Mulheres Negras Decidem com 42 parlamentares indica que quase metade deles apoia mais direitos e dá aval ao STF

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O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) volta e meia disputam o poder de decisão sobre assuntos relevantes para a sociedade brasileira. Os recentes julgamentos do Marco Temporal para Terras Indígenas e da descriminalização do porte de drogas são exemplos disso. Neste mês, a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação entrou em pauta no plenário virtual da corte pela ministra Rosa Weber, que se aposenta em 2 de outubro. A magistrada votou a favor do direito das mulheres de interromper uma gestação neste período por vontade própria. Mas o ministro Luis Roberto Barroso, próximo presidente do Supremo, pediu que o julgamento continue presencialmente, o que não tem data para acontecer. Mas, o que o Congresso pensa sobre isso? 

Uma pesquisa do Instituto AzMina e movimento Mulheres Negras Decidem entrevistou 42 parlamentares federais para entender melhor suas posições sobre gênero e raça entre abril e julho de 2023. A interrupção da gestação foi um dos temas tratados.

Nossa equipe também realizou um levantamento histórico sobre 105 parlamentares de diferentes grupos políticos, incluindo mais de 40 categorias de análise, como identidade de gênero, escolaridade, votos nas últimas eleições, doações de campanha e dos partidos, reeleição, relação com movimentos sociais, papel de liderança, proposições legislativas e discursos em plenário. Esse conteúdo foi consolidado no relatório “Além do plenário: gênero e raça no Congresso Nacional”, que será lançado no final de outubro, mas já tem algumas informações reveladas nesta reportagem.

Entrevistados confiam no juízo do STF

Entre os entrevistados, 47,6% acreditam que cabe ao STF decidir sobre a interrupção voluntária da gravidez, mas 45,2% discordam, alegando que o Supremo invade as funções do legislativo. Outros 7,1% não sabem ou não tem certeza se a decisão cabe ao tribunal. “Quem tem que decidir sobre aborto é o povo, e quem representa a população são os congressistas. É pra isso que existe um parlamento”, argumenta o deputado Lincoln Portela (PL-MG). O parlamentar de oposição está no 7º mandato na Câmara e é conhecido pelos posicionamentos conservadores.

Em meio ao debate, a oposição articula com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), um plebiscito sobre a descriminalização do aborto. O movimento é encabeçado pelo líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), que já reuniu as assinaturas necessárias, e planeja dar andamento ao processo em breve.

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Do outro lado da praça dos três poderes, a presidente do STF, Rosa Weber, votou pela descriminalização do aborto até o 3º mês de gestação nas primeiras horas de 22 de setembro. Em 129 páginas, a magistrada, relatora da ação, justificou: “a questão da criminalização da decisão, portanto, da liberdade e da autonomia da mulher, em sua mais ampla expressão, pela interrupção da gravidez perdura por mais de setenta anos em nosso país”, se referindo ao Código Penal, de 1940. “Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todas as outras dimensões do projeto de vida digna”, completou.

Ação discute direitos fundamentais

É importante saber como pensam os parlamentares nessa pauta porque eles podem movimentar a opinião pública, questionar o Supremo, ou propor leis que contrariam as previsões legais atuais, ameaçando direitos fundamentais de mulheres, meninas e pessoas que gestam. 

Desde 2019, a tribuna da Câmara dos Deputados sediou 28 discursos que envolveram o tema aborto. Desdes, 10 apenas citaram o procedimento, enquanto 18 falaram contra a interrupção da gravidez. Neste período, nenhum deputado discursou em defesa desse direito reprodutivo.

A legislação brasileira permite o aborto em casos de estupro, feto anencéfalo ou quando há risco a vida da pessoa gestante. Entretanto, a ação colocada em pauta por Rosa Weber, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), foi apresentada pelo PSOL em 2017, e pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

Infográfico sobre o que é uma ADPF. No texto, é explicado que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi criada pela Constituição Federal de 1988, e preenche lacunas deixadas pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), que não podem ser propostas contra leis ou normas anteriores à Carta Magna nem contra atos municipais. A ADPF produz efeito para todos (ergas omnes) e vinculante (de observância obrigatória), e serve para evitar ou reparar lesão a algum preceito fundamental da Constituição por atos da União, estados, Distrito Federal e municípios.
Arte: Giulia Santos.

Pelo pedido, o plenário do Supremo decidirá se considerar o aborto até 12 semanas um crime – conforme o Código Penal Brasileiro – viola direitos fundamentais da pessoa humana, infringindo preceitos básicos como o de liberdade, igualdade, cidadania e dignidade de meninas, mulheres e pessoas que gestam. 

A arguição mostra que as maiores vítimas da criminalização do aborto são mulheres negras (pretas e pardas), de baixa renda e pouca escolaridade. Muitas morrem por falta de conhecimento sobre contracepção ou de dinheiro para pagar por um aborto seguro. 

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Letícia Ueda Vella é advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, organização sem fins lucrativos que oferece atendimento médico, social e psicológico a mulheres vítimas de violência de gênero. Ela questiona a efetividade da lei, que criminaliza meninas e mulheres e dificulta o acesso ao procedimento. “Autorizar o aborto em apenas algumas circunstâncias promove interpretações restritivas do acesso a este direito, mesmo nas hipóteses de violência sexual, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia”, explica. Ela lembra os casos emblemáticos de crianças vítimas de estupro impedidas de interromper gestações, coagidas por movimentos pró-vida e contra o aborto. “São exemplos concretos das barreiras existentes no acesso ao aborto legal em nosso país hoje”.

Vida desde a concepção?

Infográfico sobre como parlamentares votariam no estatuto do nascituro. 40,48% disseram que se posicionariam contra a matéria. 35,71% responderam que votariam a favor. 23,81% escolheriam abstenção. Fonte: Além do Plenário - AzMina e MND.
Arte: Giulia Santos.

O “Além do Plenário” também perguntou aos parlamentares como votariam em projetos que incluem a expressão “vida desde a concepção”, como o Estatuto do Nascituro. Neste caso, 40,48% disseram que se posicionariam contra a matéria, 35,71% responderam que votariam a favor; 23,81% se absteriam.

A proposta tramita há anos na Câmara sem avanços notáveis, mas com vários novos projetos apensados. O texto original discutido hoje é o PL 478/07, que inclui o aborto no rol de crimes hediondos, criando assim o Estatuto do Nascituro, que concede direitos ao embrião – união entre um óvulo e um espermatozoide -, ou seja, antes mesmo de desenvolvido no útero e de ser transformado em feto.

Analisando os dados da pesquisa, Letícia Vella apontou contradições nas respostas dos parlamentares. Embora apenas 9,5% dos entrevistados defendam a restrição nas hipóteses de aborto legal, 35,7% concordam com o uso do termo “vida desde a concepção”, que proibiria qualquer interrupção de gravidez. Ela acredita que essas expressões mascaram a real intenção de negar o direito ao aborto no país. 

Religião afeta posicionamentos

Infográfico sobre a posição dos parlamentares entrevistados sobre permissões atuais para o aborto legal. Dados gerais: 50% defendem a manutenção dos critérios para interrupção legal da gestação. 41% pela ampliação, e 9% pela redução. Ao cruzar dados de religião dos parlamentares, vê-se que 20% de evangélicos e 4% de católicos defendem a redução desses critérios. 60% de evangélicos e 41% de católicos defendem a manutenção, e 20% de evangélicos e 54% se posicionam a favor de ampliação. Dados de gênero mostram que 14,3% de homens e 0% de mulheres parlamentares defendem a redução de critérios para aborto legal. 57,1% de homens e 32% de mulheres apoiam a manutenção dos critérios, e 28,8% de homens e 68% de mulheres lutam pela ampliação dos mesmos.
Arte: Giulia Santos.

O mapeamento “Além do Plenário” também revelou que 50% dos parlamentares entrevistados são a favor da manutenção dos critérios atuais para a interrupção legal da gestação. Ao passo que 42,5% defendem a ampliação dos casos permitidos, e 9,5% se posicionam pela redução das permissões para o aborto legal.

Ao cruzar os dados da religião de cada parlamentar que respondeu à pesquisa, vê-se que mais da metade dos católicos (54%) foram a favor da ampliação dos casos previstos na legislação vigente. 41% defendem a manutenção da lei atual e apenas 4% pedem a redução desses critérios. 

Entre os congressistas evangélicos, a divergência é maior: 60% deles se declararam a favor da manutenção da lei atual. Os 40% restantes se dividem igualmente entre a ampliação e a redução das permissões para o aborto legal (20% cada). 

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Todos os parlamentares que se declararam sem religião foram a favor da ampliação das possibilidades de aborto legal no país. Uma delas foi a deputada Érika Hilton, do PSOL, partido autor da ADPF 442  no STF. “A gente precisa estabelecer que a pessoa que está grávida possa ter autonomia de decidir se tem ou não condições de levar adiante aquela gestação”, defende.

A senadora Teresa Leitão (PT-PE) está entre os católicos a favor da ampliação do direito ao aborto. Ela defende um debate amplo sobre o tema, alegando que o debate é sobre “o livre arbítrio da mulher”. “É mais um fator de desigualdade entre as mulheres, onde mais se morre por aborto voluntário nas clínicas clandestinas. Quem vai para a clínica de aborto? São as mulheres pobres, vulneráveis, pretas”, critica a senadora. 

Também católica, a senadora Ana Pimentel (PT-MG) não apoiou a autorização do aborto legal até a 20ª semana de gestação.

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