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7 de outubro de 2019

O risco à vida das mulheres está na conta do Estado, não na nossa

Damares Alves escreveu que denunciou reportagem d’AzMina sobre aborto porque o texto colocaria em risco a vida das mulheres. Mas quem faz isso é o governo ao criminalizar nosso direito de escolha

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A ministra Damares Alves disse que nossa reportagem colocaria a vida das mulheres em risco, mas é a política de saúde brasileira que faz isso. Foto: Agência Brasil

Na última quarta-feira (2), a ministra Damares Alves publicou um texto na Folha de São Paulo, como resposta ao editorial do jornal que criticava a ameaça e denúncia feitas pela ministra contra nós d’AzMina, por causa da reportagem sobre como é feito o aborto onde ele é legalizado. Reportagem feita com base em orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicadas em um documento público (disponível online e em português) . No seu texto, Damares alega que não atacou a liberdade de imprensa e sim agiu para prevenir a realização de abortos malsucedidos. 

Mas, claramente, essas nunca foram as intenções da ministra. 

Leia mais: Como é feito um aborto seguro?

Para começar, seu principal argumento é de que a reportagem coloca mulheres em risco ao explicar “como se toma o medicamento abortivo e sequer deixar claro sobre as consequências e os efeitos colaterais”. A partir disso, já dá para perceber que não leu a reportagem que denunciou. Se tivesse lido o texto, saberia que não só listamos possíveis efeitos colaterais, como destacamos essa informação. 

Para a ministra, a divulgação de informação coloca a vida das mulheres em risco. E para explicar isso, ela compara duas coisas que não se equivalem. Damares comparou a divulgação de informação sobre aborto com divulgação de informação sobre suicídio. Uma comparação, no mínimo, desonesta. Ensinar as pessoas técnicas de suicídio é estimular essas mortes.

Fornecer informação sobre aborto seguro é evitar mortes.

Sim, evitar. Porque, apesar de ser crime, todos sabemos que mulheres abortam (a última pesquisa feita sobre isso, em 2016, mostrou que são meio milhão de abortos por ano no Brasil!). E sem informação e orientação, essas mulheres fazem o procedimento de forma insegura e colocam suas vidas em risco. 

As orientações da OMS descritas na reportagem são usadas por muitos países onde o aborto é legalizado e em algum deles, inclusive, a mulher faz o procedimento em casa. Elas vão até o serviço de saúde, recebem o remédio, orientações, vão para casa e fazem o aborto. Se algo dá errado, elas podem ir tranquilamente para o hospital receber atendimento e tratamento. Isso é salvar vidas. 

Sabe o que coloca a vida das mulheres em risco? Não é fornecer informação. Mas sim uma política pública que mantém essas mulheres na clandestinidade.

Ao contrário desses países, aqui no Brasil elas compram o remédio no mercado clandestino, sem nenhuma garantia de que os comprimidos são seguros, vão para casa sem orientação e, se algo dá errado, têm medo de ir para o hospital e serem presas. Algumas vão e são maltratadas, outras vão e são processadas, outras ficam em casa e morrem. Essas mulheres morrem por falta de informação e atendimento. 

Leia mais: Mulheres processadas por aborto: não há como provar que houve crime

Morrem por causa da política pública do Estado brasileiro que criminaliza o aborto. Todo mundo sabe, inclusive a ministra, que mulheres abortam, mesmo sendo ilegal. E a criminalização só faz com que optem por procedimentos inseguros. O próprio Ministério da Saúde mostrou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, que o aborto provocado pela mulher é a terceira maior causa de morte materna no Brasil. O risco à vida delas está na conta do Estado brasileiro e não da Revista AzMina. 

Essas mulheres morrem porque não podem contar com o Estado em sua decisão de quando ter ou não um filho.

E ter acesso a informação é um direito de toda mulher e, mais que isso, pode ajudar a evitar algumas dessas mortes enquanto o governo não cumpre seu papel. 

Papel que parece cada vez mais longe de ser cumprido: os esforços dos poderes Legislativo e Executivo para restringir ainda mais os direitos à interrupção da gravidez avançam a olhos vistos. A própria ministra diz em seu artigo que o atual governo defende a proteção à vida desde a concepção. Isso significa, na prática, tentar proibir o aborto nos casos inclusive em que ele é legal no país, como para vítimas de estupro. 

Leia mais: “O Estado trata o aborto como piada”, diz especialista no assunto

Se a ideia é reduzir o número de abortos, sugiro que veja os dados dos países em que o aborto é legalizado. Eles mostram que o número de interrupções de gestações vão caindo ao longo do tempo. É que uma vez que essas mulheres contam com atendimento, é possível evitar abortos realizado por desespero ou forçados pelo parceiro. Outro motivo pelo qual aborto deveria ser descriminalizado é o fato de que anticoncepcionais falham e as mulheres são as únicas penalizadas por isso. 

Por fim, a ministra diz que é a favor da liberdade de imprensa e que o governo trabalha para proteger jornalistas. Era minha proteção, Damares, que você queria, quando usou seu Twitter, com 546 mil seguidores,  para atacar a reportagem e informar que a denunciaria? Fazendo isso, incitou milhares de internautas a atacarem a mim e a outras jornalistas da revista por fazer nosso trabalho de informar. E foi o que fizeram: compartilharam nossos endereços e perfis em redes sociais, num claro convite a perseguição na vida virtual e real.

Se queria mesmo denunciar um trabalho irresponsável, por que não fez apenas a denúncia no Ministério Público e deixou a justiça seguir seu curso? Sinceramente, é difícil acreditar que a vida das mulheres e a segurança das jornalistas são suas principais preocupações.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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