Mais uma vez assistimos vítimas de abuso serem ameaçadas de ter seus passados escrutinados como forma de ver sua denúncia descredibilizada. A diferença é que dessa vez não é uma ou duas mulheres, são mais de 500 mulheres denunciando João de Deus, que nega as acusações.
O advogado do médium afirmou que pretende investigar os passados das mulheres, para ver se seus depoimentos merecem crédito ou não.
“Há uma holandesa (…) estou recebendo informações já com um dossiê, tem um passado nada recomendável, o que pode descredibilizar [o depoimento]. Quero dizer que ela era uma prostituta e tinha um passado de extorsão”, disse em uma entrevista.
Isso não é novidade. Sempre que uma mulher denuncia uma violência, a primeira pergunta que se faz não é sobre a violência e sim sobre quem seria essa mulher. Que roupa usava? Era sexualmente ativa? Era “promíscua”? Prostituta?
Quando a prova é a palavra, a dela vale menos
Casos de abuso são sempre complicados, pois muitas vezes não existem provas físicas. Por medo de não ter crédito e ser exposta, a mulher pode demorar para denunciar. E testemunhas também são raras. Na hora de a Justiça decidir, acaba virando um caso da palavra dele, contra a dela.
Aí é que entra o passado da vítima. Ele é devassado (e sua vida devastada, mais ainda) para mostrar que essa mulher “provocou” o abuso. E numa sociedade que tende sempre a acreditar muito mais na palavra do homem, isso pode ter um peso enorme, inclusive para interferir na decisão da Justiça. Mas, principalmente em casos de grande visibilidade, para afetar a opinião pública e pressionar a Justiça.
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Lembram do caso do ator José Mayer? Logo estourou que a vítima teria tido um caso com ele. E daí? Não é porque uma vez uma mulher quis transar com um homem, que ela tem que querer de novo depois.
No caso atual de João de Deus, a gente precisa lembrar o advogado que não é porque uma mulher é prostituta que seu corpo está disponível quando ela não dá autorização. O consentimento vale o mesmo para todas as mulheres, sejam elas virgem, santa, puta, amante, vadia… Não é não.
Não é para condenar sem investigar, mas sobre investigar a coisa certa
A verdade é que, aos olhos da cultura machista em que vivemos, qualquer mulher vai ter algo condenável no seu passado para ser usado como forma de descrédito. Porque a sociedade acha que qualquer mulher merece descrédito.
Se ela não for puta, ela transava na primeira noite. Se não transava, ela já trocou mensagens picantes com alguém. Se não trocou mensagens, ela já encheu a cara ou usou drogas. Se não usou nenhuma substância, ela já usou roupas “insinuantes”. Se não usou roupas insinuantes, ela tinha uma atitude provocadora. E por aí vai…
Sejamos honestas: para os homens, essas mais de 500 vítimas provocaram João de Deus simplesmente porque eram mulheres. E para muitos homens, o simples fato de alguém ser mulher quer dizer que seu corpo está disponível para satisfazê-lo.
É chocante ver que João de Deus usava um momento de vulnerabilidade e dor para abusar dessas mulheres. De tantas. Mas é ainda mais triste ver como a sociedade responde às denúncias.
Mas dessa vez a Justiça não vai poder dar voz por completo ao machismo.
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Troque o caso por um assaltante. Imagine se 500 pessoas denunciassem um homem por roubar suas casas e reconhecessem seu rosto. Acham que alguém iria investigar se as vítimas deixaram a porta aberta ou se tinha cópia da chave ou ainda se costumavam deixar pessoas entrarem em suas casas?
Não é sobre condenar alguém sem investigar. Mas sim sobre entender o que de fato é relevante na investigação e o que é puro machismo.
Espero que a Justiça e a mídia entendam a gravidade da situação antes de sair divulgando qualquer coisa sobre o passado dessas mulheres. Elas não merecem ter suas privacidades tornadas públicas. Elas só merecem o respeito de serem ouvidas e terem suas denúncias levadas em consideração.