Qual é a primeira imagem de uma mulher com deficiência que lhe vem à cabeça ainda hoje? É aquela que é dependente fisicamente e emocionalmente da família ou dos relacionamentos amorosos? Ou aquela que pode escolher ser protagonista de sua história? Talvez seja a imagem da mulher com deficiência ‘frágil’ e ‘incapaz’… Sabe por quê? A sociedade brasileira ainda é muito capacitista!
Segundo Fiona Kumari Campbell, professora sênior na Escola de Educação e Serviço Social da Universidade de Dundee na Escócia, se traduz como capacitismo a palavra inglesa ableism, que significa a discriminação por motivo da condição de deficiência. O conceito está associado com a produção de poder e se relaciona com a temática do corpo por uma ideia de padrão corporal perfeita; também sugere um afastamento da capacidade e da aptidão dos seres humanos, em virtude da sua condição de deficiência.
Eu vivenciei diariamente o capacitismo, em uma época em que ele nem existia no Brasil como conceito acadêmico. Era discriminação direta ou velada mesmo. Preconceito puro. Soco no estômago todos os dias! Barreiras e mais pedras no caminho. Olhares que me rasgavam por dentro… Palavras que feriam mais do que um tapa na cara… Portas que se fecharam e janelas que nunca foram abertas. Só eu sei as cicatrizes que tenho! Só eu sei quantas vezes disfarcei estar bem por fora, quando eu estava por dentro despedaçada…
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Eu nasci em 1977 desacreditada por aqueles que só conheciam a minha existência com deficiência física relatada em livros. Disseram que eu teria poucas chances de sobreviver. Quando saí do hospital afirmaram para minha família que eu era completamente frágil fisicamente e psicologicamente. E que precisaria de cuidados para o resto da vida, 24 horas por dia, caso eu não morresse cedo. Imagino a sensação de impotência que passou pela cabeça da minha família, sem saber como fazer para garantir a minha existência em um mundo que, para eles, não havia sido feito para pessoas como eu, ‘imperfeitas’ e ‘sem capacidades’…
O tempo passou e eu surpreendi a todos justamente por chorar e ao mesmo tempo sorrir exatamente como qualquer criança sem deficiência. Mas creio que a insegurança, a vergonha, o medo e a dor da discriminação de toda a sociedade foram alguns dos principais motivos pelos quais minha família foi superprotetora em diversos momentos, prejudicando a minha autoestima.
Por isso, sobrevivi com esta mistura de sentimentos dentro da minha mente por muitos anos: de incapacidade total, a ilusão de ser uma heroína ou de ser uma hipócrita ‘benção dos céus’. Para conseguir simplesmente existir – com as dores e delícias de se ser o que se é – eu literalmente gritei (e ainda grito) aos quatro ventos que eu ocupava – e ainda ocupo – um espaço na sociedade.
Mulheres com deficiência vivenciam dupla discriminação: capacitismo e gênero.
Solange Ferreira, ex-coordenadora de Políticas de Pessoas com Deficiência da Secretaria Nacional de Promoção da Pessoa com Deficiência, nos alertou sobre essa dupla discriminação e questionou o movimento feminista quando disse: “Mulheres com deficiência não fazem parte da categoria mulher? E se fazem, por que são apagadas das discussões? A deficiência nos faz menos dignas de tal título?”
Quando eu li as palavras da blogueira Mariana Silva também senti uma profunda identificação: “Eu não sou uma prateleira de diagnósticos. Tão pouco um vaso para o depósito de opiniões. Eu sou uma mulher. Perfeita em minhas imperfeições. Uma obra de arte em eterna construção. Corpos com deficiência escapam às normas. Então, ficam nas sombras. Como se sentir representado e, logo, empoderado, se a invisibilidade engole os gestos mínimos das existências com deficiência?”.
A minha vida também foi – e continua sendo – exatamente desta forma. Por isso, a estreia da minha coluna aqui na Revista AzMina foi com o texto O que falta em uma mulher com deficiência?, em que confessei que ainda vivo situações de exclusão que me desestabilizam emocionalmente, e preciso falar sobre estas feridas para que elas cicatrizem.
Capacitismo no ambiente de trabalho
Nos anos 2000, a minha colega de departamento simplesmente arrancou da minha mesa uma lista em que eu estava conferindo os endereços das unidades (para as quais eu precisava telefonar e passar algumas informações) e começou a refazer TUDO! Eu já havia terminado o serviço, e tinha revisado três vezes para ver se estava tudo certo. Somente a gerente do departamento tinha o direito de corrigir algo. Nunca uma colega de trabalho que estava na mesma função que eu. Ela simplesmente, duvidou da minha CAPACIDADE!
Um completo desrespeito e capacitismo, afinal, eu já era formada em comunicação social, e tinha sido selecionada para ocupar aquela vaga, justamente porque tinha condições técnicas e acadêmicas para realizar aquelas atividades. E na verdade teria competência e qualificação para ocupar outras funções superiores àquela de atender telefone. Mas este é assunto para outro texto sobre desvalorização profissional aliada ao capacitismo.
Outra situação capacitista que passei foi bem mais forte. Quando eu já estava trabalhando como jornalista em uma pequena editora sofri assédio moral. Tudo aconteceu em uma tarde quando voltei de uma grande cobertura jornalística de um evento importante. Eu estava bem cansada e comecei a conversar com uma colega sobre assuntos pessoais. Quando comentei sobre relacionamentos amorosos, uma outra profissional começou a rir bem alto debochando de mim. Ela chegou até a colocar um objeto pontiagudo na minha cara e insinuar que eu desejava ser ‘amada’. Infelizmente, eu fiquei totalmente paralisada e não consegui reagir!
Hoje tenho consciência que a minha história não difere muito das histórias de várias mulheres com deficiência, seja de nascença ou adquirida. Todas precisaram matar um leão por dia, exatamente para dizer que não deveria ser preciso matar um leão por dia! Justamente porque não eram elas que estavam no lugar errado! Nunca estiveram, mesmo que suas famílias, amigos e a sociedade em geral apontassem o dedo sempre primeiro para suas diferenças, ao invés de constatar suas igualdades humanas, respeitando seus limites e encorajando potencialidades, sem pré-julgar ou oprimir suas plenas participações sociais.
Como a maioria das mulheres com deficiência brasileiras, eu demorei mais de 30 anos para compreender que eu não nunca estive fora do lugar que sempre quis estar. O machismo e o sexismo arraigados na sociedade, a discriminação e o preconceito escancarados ou velados em relação a minha condição de deficiência, sempre estiveram presentes em minha vida durante muito tempo.
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O mais terrível é que eu não conseguia enxergar cada um deles como monstros a serem combatidos! Fui na maior parte do tempo enganada e dominada por eles, sem perceber… As leituras e os estudos sobre o feminismo que venho fazendo livremente como autodidata, além das sessões de terapia, estão me libertando e me aproximando de um verdadeiro empoderamento interior. Por isso, eu consegui escrever aqui sobre qual o lugar de fala das mulheres com deficiência.
Eu também aprendi que em sociedades capacitistas, a ausência de qualquer deficiência é vista como o ‘normal’ e pessoas com deficiência (seja física, visual, intelectual, auditiva, mental, múltipla ou surdocegueira) são entendidas como exceções. Isto acontece porque a condição de deficiência é erroneamente vista como algo a ser ‘superado’ ou ‘corrigido’, e se possível por intervenção médica; ou que deve ser realizado pela própria pessoa com deficiência, se ‘adaptando’ ao mundo que não foi criado para respeitar as diferenças, e sim para excluí-las todos os dias.
Um completo absurdo hoje, em que a condição de deficiência não pode ser dissociada do modelo social dos direitos humanos, que é amplamente aceito pela comunidade mundial como o único que respeita diversas formas de existência. Este modelo determina a criação de políticas públicas em uma sociedade inclusiva, em que a participação ativa e autônoma das pessoas com deficiência seja uma regra, garantindo o seu protagonismo e lugar de fala em todos os ambientes: familiar, relacionamento pessoal, escolar, profissional, saúde, lazer, religioso, esportivo, entre outros.
A condição de deficiência não pode ser vista pela sociedade como algo que falta em alguém. Precisa ser enxergada pelo prisma da diferença humana inata, que por suas singularidades requer atenção às especificidades quanto à: forma de comunicação, mobilidade, ritmos, estilos e diversas maneiras de construir o conhecimento e os relacionamentos sociais; por meio do desenvolvimento de suas potencialidades, com total autonomia e independência em uma sociedade acessível a todas e todos, de qualquer idade, etnia, credo, gênero, orientação sexual, nacionalidade, entre outros.
É por isso que faço minhas as sábias e fortes palavras da blogueira Mariana Silva: “Apagar as mulheres com deficiência dentro do feminismo não empodera. Apaga. Discrimina. Não acolhe. Não traz sororidade entre nós, mulheres. É hora de darmos as mãos. E seguirmos juntas. Todas as nossas existências frágeis importam. Devemos fazer barulho. Nem uma a menos. Seja ela uma mulher com deficiência. Ou sem”. O pensamento dela completa o texto que escrevi aqui em agosto: Quais mulheres cabem no seu feminismo?
origens do capacitismo
O capacitismo remonta do governo nazista, quando em 1933, o sonho de Hitler se materializa no formato de uma lei que permitiria a dita “higiene racial”. A lei de prevenção contra a “prole geneticamente doente” (GezVen) determinava que as pessoas que possuíam determinadas condições tidas como congênitas (esquizofrenia, bipolaridade, epilepsia, doença de Huntington, cegueira, surdez, deformidade física grave, entre outras condições) fossem conduzidas para um processo de esterilização, do qual faziam parte um parecer médico e uma autorização judicial. Mais de 400 mil pessoas foram esterilizadas na Alemanha. E após a GezVen, o programa Aktion T4 assassinou mais de 260 mil pessoas com deficiência no mesmo país, em nome da ‘morte misericordiosa’. O programa se valia do slogan: “uma vida que não valia a pena ser vivida”.
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E apenas em 1988, o governo alemão condenou a lei nazista e considerou as esterilizações forçada realizadas entre 1933 e 1945 como ‘erradas’. Nesta mesma data, a Alemanha classificou como desumana a afirmação que as pessoas com deficiências e doenças que foram mortas eram “indignos de viver a vida”; e também reconheceu que as vítimas de esterilização forçada e suas famílias eram dignas de respeito e compaixão. Mas as vítimas e seus familiares jamais foram indenizados pelo governo. E a lei nazista só foi definitivamente revogada (pasmem!) em 2007, pela Lei Fundamental da República Federal da Alemanha.
“Fica evidente o quanto é difícil, mesmo ao reconhecer sua desumanidade para com as pessoas com deficiência, que a sociedade em questão, modelada em uma narrativa de compaixão, mas não de dignidade, assume um erro, mas não o indeniza. Esta é a sociedade capacitista”, explicou Adriana Dias, mestre e doutoranda em Antropologia Social pela Unicamp, em artigo publicado nos anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência da Secretaria Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência em 2013.
Para conhecer mais sobre capacitismo:
- Tese acadêmica: “Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de experiências, narrativas e observações sobre violências contra mulheres com deficiência”. Disponível aqui.
- Artigo: “Interseção entre gênero e deficiência, sexismo, misoginia e capacitismo”. Disponível aqui.
- Artigo acadêmico: “Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal a narrativa capacitista social”. Disponível aqui.
- Artigo: “Brasil: do modelo social da deficiência ao modelo de mercado”. Disponível aqui.