Quem sou?
Mistério doce
Forma diferente por ser igual
Humana,
Calma,
Intensa,
Densa,
Ardente
Exatamente como deve ser
Se um dia aparecerei?
Não sei…
Sigo o destino de não saber se existe destino
Vivo cada minuto como se fosse o último porque ele é
Carrego comigo todas as dores e delícias de ser mulher
Imperfeita / perfeita
Por simplesmente ser
Sem medo de existir
Certo dia, eu tive a felicidade de ouvir que quando fazemos alguma coisa é porque simplesmente precisamos fazer. O ato de compor uma música, pintar um quadro, tocar um instrumento, esculpir uma peça, escrever um poema ou um singelo texto, assim como outras inúmeras ações podem ser considerados ‘divinos dons artísticos’ ou não. Porém, a beleza está em se fazer por fazer. Pelo simples fato de exprimir uma necessidade interior que transcende a qualquer norma, conceito ou objetivo pré estabelecido. Por isso eu escrevo! Escrevo pela paz que sinto ao colocar no papel todos os sentimentos e experiências vividas até agora. Sem me preocupar com o que as pessoas irão pensar; com o que realmente se tornará um dia os meus cadernos e diários… Mas será que serei lida?
A escritora Virginia Woolf brilhantemente descreveu a saga das mulheres na virada do século 19 para o 20 não apenas para existir e sobreviver, mas principalmente para viver e se sentir realizada, como ser humano, e não propriedade e/ou ‘saco de pancada’, literalmente. Eu constato que, infelizmente, pouca coisa ou quase nada mudou desde aquela época até hoje.
Atualmente, eu ainda luto para sobreviver em uma sociedade que valoriza a força física como a principal e mais rentável forma de trabalhar; e consequentemente descarta a maioria daquelas mulheres que possui alguma deficiência, como eu. Eu ainda não tenho um livro publicado, mas resisto e busco a cada novo amanhecer, uma luz para continuar seguindo o que sinto ânsia em fazer: escrever minhas histórias…
Histórias
Tenho que contá-las
Vim pela palavra e para ela servirei
As palavras são meu ar
Tomei coragem de encontrar a minha alma refletida…
Nas palavras, nas histórias, nas pessoas…
Como conseguiremos viver em dois mundos?
Mas em que mundo eu vivo? Totalmente excludente ainda! Não sou apenas eu quem afirmo isso, mas Kenny Fries, autor americano premiado com uma bolsa de estudos Arts and Literary Arts do Rockefeller Foundation Bellagio em 2019. As autoras com deficiência Adrienne Rich e Lucy Grealy fazem parte do livro: Staring Back: The Disability Experience de Inside Out (Olhando para trás: a experiência de deficiência de dentro para fora), editado por Kenny e publicado pela Plume; é a primeira antologia multi-gênero de escritores e escritoras com deficiência do planeta!
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Escritoras brasileiras com deficiência. Você sabe que existem?
No Brasil eu arrisco a dizer que a situação de abandono entre as escritoras com deficiência ainda é bem pior! Vejamos… Quem de vocês conhece a escritora com deficiência visual Bartyra Soares, que tomou posse na Academia Pernambucana de Letras em 2015? O primeiro livro de Bartyra: “Enigma” foi publicado em 1976, seguido por “Sombras consolidadas”, em 1980. A autora publicou, posteriormente, outras nove obras. Bartyra também tem poemas publicados em diversas antologias, revistas e jornais. Como contista e poeta, já recebeu quinze prêmios literários!
Creio que vocês também não saibam que outra autora com deficiência visual, Lídia Maria Cardia lançou em 2017 seu primeiro livro de poesias: “Apenas Um Minuto”, durante a abertura da 36ª Semana Literária & Feira do Livro do SESC SP? Sobre seu livro, ela diz que os poemas são baseados em personagens comuns à nossa sociedade: “nem todos os personagens sou eu, muitas vezes eu narro histórias sobre as mulheres, o que elas vivem, o que passam, as pessoas em situação de rua, as crianças, a mãe solteira, os namorados”. E seu processo criativo, Lídia não espera hora nem lugar: “escrevo no ônibus rascunhando, nas madrugadas, se eu acordo com aquela intenção, levanto escrevendo e vejo o sol nascer”.
Outra importante jornalista que escreveu um livro e fez história foi a saudosa Ana Beatriz Pierre Paiva. Junto com outros seis jovens com deficiência intelectual, publicou em 2011 a obra: “Mude o Seu Falar Que Eu Mudo Meu Ouvir”? Foi o primeiro livro sobre acessibilidade atitudinal escrito por jovens com deficiência intelectual no Brasil. Um grande marco lançado na sede da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, em versões em inglês e português.
Já a escritora e poetisa surda Emiliana Faria Rosa, doutora em linguística, mestra em educação e professora de Língua Brasileira de Sinais na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), também contou sobre a experiência de escrever o seu livro de poesias “Borboletas Poéticas”, em 2018 no Programa Especial da TV Brasil. Ela ficou surda aos onze anos, e assim se define: “sobre ser surda? Sim, sou surda. Bilíngue, ou seja, tenho duas línguas: a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e o português. Sortuda, eu… Duas línguas para ser, viver, criar. O Português é a minha língua de escrita; a Libras é minha língua de liberdade. E borboletas? Também. Eu aprendi a gostar quando percebi que sou, somos borboletas…” O livro de Emiliana apresenta três fases, que segundo a autora refletem o amadurecimento e florescimento poético; e cada pétala do casulo cai junto a uma nova fase de um novo poema.
E quem de vocês também sabe que a Biblioteca Braille Dorina Nowill, em Taguatinga (DF), lançou a primeira Academia Inclusiva de Autores Brasilienses? Ela foi fundada com o intuito de promover a obra literária de pessoas com deficiência visual no Brasil e no mundo. E as autoras lançaram em 2010 a obra: “Revelando Autores em Braille”, que traz um compilado de histórias e poemas escritos de forma inclusiva.
Kátia Iuriko Ito e Luciana Scotti (escritoras com deficiência física), Joana Belarmino (escritora com cegueira) são outras renomadas escritoras brasileiras que provavelmente você não sabia que existiam! Por qual motivo? Por que as mulheres com deficiência ainda são invisíveis aos olhos da sociedade, e com as escritoras não é diferente!
Dentro dos próprios cursos, grupos ou clubes de escrita, elas são excluídas por não conseguirem ter acesso aos locais das reuniões (que em sua maioria possui escadas), não têm intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (para pessoas com surdez e/ou com deficiência auditiva), ou escritos e impressos em Braille ou com áudio-descrição (para pessoas com cegueira e/ou deficiência visual), por exemplo, entre outros recursos de acessibilidade comunicacional e atitudinal.
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Quando eu conheci o Clube de Escrita para Mulheres na internet, encontrei uma oportunidade de compartilhar meus tesouros literários com outras escritoras. E por isso, me inscrevi no edital da Coletiva Mamoreira, uma rede formada por um grupo de mulheres que se uniram com o objetivo de valorizar, promover e intermediar a literatura criada por escritoras por meio da preparação, da revisão e da elaboração de projetos gráficos.
Porém, eu fui a única escritora com deficiência física em uma seleção de mais de 15 autoras. Sendo que nenhuma escritora com deficiência visual, auditiva, intelectual ou múltipla sequer se inscreveu. Sinal de que existe um grande caminho a ser percorrido para conectar o mercado editorial, as editoras independentes com as autoras com e sem deficiência e suas produções literárias. Eu já consegui colocar uma pequena – mas não menos importante – pedra neste caminho a ser trilhado. Presenteei meus futuros leitores e leitoras, com a gravação da minha crônica autobiográfica: “Viagem a uma montanha transparente”, que pode ser visto aqui:
Caminhos para as escritoras com deficiência serem ouvidas!
Oficinas de Escrita Inclusivas podem ser um caminho interessante para promover cada vez mais a aproximação das escritoras, os centros culturais e as editoras. Falar sobre nossas memórias de forma livre foi o que um grupo de pessoas com e sem deficiência fez em abril de 2019 no Centro de Cultura do Butantã, em São Paulo.
Naquela manhã foi possível exercitar o lugar de fala e compartilhar lembranças, seja por meio de textos escritos ou contados em Língua Portuguesa ou Língua Brasileira de Sinais. A atividade mediada por mim aconteceu através de dinâmicas de sensações, onde quem participou teve vendas nos olhos para sentir objetos e frutas; além de ouvir músicas e ver imagens. O objetivo da atividade inclusiva foi desenvolver a criatividade e alguns dos potenciais de relatos verbais, pictóricos e/ou escritos dos participantes da oficina por meio de leituras de textos curtos como exemplo para demonstrar certos aspectos das técnicas de “Cena” e “Memórias”, existentes nas Narrativas Biográficas do gênero do Jornalismo Literário. A oficina contou com intérpretes de LIBRAS. O resultado da oficina pode ser visto no vídeo poético: https://vimeo.com/456282322
Leia mais: Conceitos e confusões sobre lugar de fala.
Um novo olhar da sociedade sobre as escritoras com deficiência.
Para Graziela C. Drago, (a Zeligara), escritora que fez parte da Coletiva Mamoeira: “são muitos os fatores que dificultam a participação das pessoas com deficiência nos espaços culturais, dificuldades causadas principalmente pelo descaso com a sua condição específica e a falta de acesso físico e comunicacional. E nos casos de deficiência intelectual, embora a estrutura física não seja tão impeditiva, falta formação especializada para o trabalho comunicativo e afetivo necessário”.
A escritora comentou que antes de me conhecer não havia tido contato com escritoras com deficiência. Para ela ter trabalhado comigo foi essencial para que tivesse mais interesse para esta questão, valorizando as produções em Libras – Língua Brasileira de Sinais. Como por exemplo, a produção da escritora que Zeligara conheceu durante o projeto da Coletiva Mamoeira, a poeta Gabriela Grigolom Silva (mulher com surdez que compõe poemas em Libras e em Língua Portuguesa).
Afinal para Zeligara: “Assim como o lugar das mulheres na literatura seja importante em razão do padrão estabelecido ser o masculino, também para as pessoas com deficiência é importante a sua expressão, uma vez que a expressão padrão é a de pessoas sem deficiência. Por isso, apresentar outra perspectiva, histórica ou pessoal, sobre a condição de um outro olhar na sociedade, um outro olhar sobre a poesia do mundo, é completamente fértil, tanto para a pluralidade literária quanto para a identidade do grupo identificado”.
Já para Raphaela da Costa Crispim, educadora que fez parte da Coletiva Mamoeira: “As escritoras com deficiência quase não aparecem pela falta de inclusão nos espaços. Elas precisam se sentir convidadas a frequentar os espaços, isso é feito com um trabalho contínuo de investimento em inclusão. Por isso, é importante que sempre tenha acessibilidade, para que o público de pessoas com deficiência aumente e exerçam seus direitos de cidadãos, de acesso à cultura, arte e educação. O lugar de fala destas escritoras é de extrema importância, para garantir legitimidade e propriedade aos discursos. E também para entendermos as peculiaridades da produção de uma escritora com deficiência”.
Camila Honorato de Barros é jornalista, educadora, escritora, e que na época foi selecionada pelo projeto da Coletiva Mamoeira. Ela comentou que ter me conhecido despertou a sua responsabilidade de, enquanto escritora que apoia outras mulheres, também pesquisar mais sobre o assunto e procurar formas de dar visibilidade às suas colegas escritoras com deficiência. “Já que o mercado editorial não impulsiona, temos que nos amparar. É nossa responsabilidade procurar formas de proporcionar recursos acessíveis para que todos tenham acesso. Eu visito muito o Itaú Cultural, o Museu da Imagem e do Som e a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em todos eles, vi muita estrutura para acolher pessoas com deficiência, inclusive com atividades específicas em braile e conteúdos com áudio descrição, bem como experiências sensoriais e intérpretes em vídeos explicativos sobre exposições”.
Para Camila a importância do lugar de fala para as escritoras com deficiência é sobrevivência, resistência, acolhimento e um meio importantíssimo de se ter voz. A literatura é um ambiente e tanto pro grito de: “estou aqui, existo, você também pode olhar pra mim”.
Eu, Leandra Migotto Certeza, que escrevo desde os 9 anos de idade, sinto na pele a urgente necessidade de um lugar de fala das escritoras com deficiência. Pois, ainda hoje com 42 anos eu não conquistei um espaço no mundo literário. Acredito que seja porque as barreiras são muitas e precisam ser derrubadas imediatamente!
Leia mais: Qual o lugar de fala das mulheres com deficiência?
Para que isso aconteça é preciso que os portais e as redes sociais tenham recursos de acessibilidade virtual, como textos compatíveis com os sintetizadores de voz e descrição de todo o conteúdo publicado para que pessoas com cegueira consigam ler. Além disso, também é necessário que os vídeos sejam publicados com legendas e janelas de Língua Brasileira de Sinais para que pessoas com surdez compreendam. Junto com estes recursos, os espaços onde acontecem os encontros e eventos culturais e literários precisam ser totalmente acessíveis para pessoas que andam em cadeira de rodas ou qualquer deficiência física e/ou mobilidade reduzida.
E para que isso ocorra todas as pessoas responsáveis por organizar estes encontros devem ter como premissa o conceito de Desenho Universal, e não apenas pensem no assunto quando uma escritora com deficiência se inscreve. Afinal, a verdadeira inclusão só acontece quando todas e todos conseguem ter acesso às informações, e aos locais com autonomia, segurança e conforto.
É necessário também permitir que as escritoras brasileiras com deficiência produzam, publiquem e sejam divulgadas! Só assim, elas não se sentirão mais trancadas do lado de dentro! Por isso, no mês de abril de 2021, irei ocupar – junto com demais artistas com deficiência – o meu espaço no Museu Vozes Diversas. Será um momento único e muito importante para mostrar à sociedade o potencial e a capacidade das mulheres com deficiência dentro das artes! Assistam!
Para saber mais:
“Do Outro Lado do Sol” obra de Kátia Iuriko Ito
Livro: “Olhando para trás: a experiência de deficiência de dentro para fora”