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7 de outubro de 2020

Escola especial não é inclusiva. Retrocessos não passarão!

Em repúdio ao decreto 10.502/20 faço meu relato de lutas e conquistas por uma educação inclusiva hoje e sempre!

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Escola inclusiva
Descrição da imagem: cartum de Ricardo Ferraz (desenhista com deficiência e ativista social). No desenho, várias crianças diferentes estão fazendo uma roda. O aluno com deficiência física (sentado em sua cadeira de rodas) está chorando ao ser agarrado por uma mão gigantesca opressora do GOVERNO FEDERAL que o retira da roda. Sobre o desenho está escrito: “Na escola inclusiva, todos iguais na diferença!” e sobre a cabeça do aluno com deficiência está escrito: “Vamos seu lugar não é aqui!”.

Muitas pessoas com deficiência ainda não conseguem ter acesso à escola! Quando eu comecei a vida escolar, em 1982, o número era ainda bem menor. Hoje o Brasil tem cerca de 1,2 milhão de alunos na educação básica com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades, segundo dados do Censo Escolar 2019. Desse total, 87% estão em classes comuns, o que representa uma vitória da educação inclusiva!

Em 2006, por exemplo, esse grupo somava apenas 700 mil alunos, dos quais menos da metade (46,4%) estava nas turmas regulares, convivendo com colegas sem deficiência, e a maioria (53,6%) frequentava classes especiais ou escolas especializadas, consideradas menos inclusivas.

Portanto, após mais de 30 anos de batalhas por um ensino que não discrimine a diversidade inata a todos os seres humanos – não será um governo federal retrógrado, ditatorial, assistencialista e discriminatório que irá abalar um tijolinho sequer que construímos com tanto suor, garra e determinação!  Afinal, este decreto que prega a diferenciação curricular, segrega o ensino e as pessoas da sala de aula, não encontra respaldo jurídico nas diretrizes da Lei Brasileira de Inclusão de 2015, na Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência de 2007 e nem na Constituição Federal de 1988. 

Faço minhas as sábias palavras, dos movimentos sociais das pessoas com deficiência, do Ministério Público (pela Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho), da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Federal de Psicologia e de outras instituições e órgãos públicos sobre a INCONSTITUCIONALIDADE do decreto 10.502/20:

“Aprendemos a respeitar singularidades, diferenças, diversidades a partir da convivência e não se apartando dela. O Governo Federal, através do MEC, deveria ampliar as possibilidades de superação das dificuldades e das barreiras à inclusão, a partir do fomento de políticas públicas de Estado, com investimentos na acessibilidade dos espaços da escola, em transporte, em tecnologias, na formação, qualificação e salário dos docentes, na gestão democrática e no estímulo a projetos pedagógicos nos quais a educação especial seja uma premissa de fato e de direito complementar ao ensino regular. As dificuldades ou barreiras referentes à inclusão precisam ser enfrentadas por todos! O direito que se nega ao aluno ou aluna com deficiência de estar na escola regular é um direito que se tira de muitos. É uma ameaça que se faz a todos nós.”

Saiba mais e assine a petição pública para REVOGAÇÃO do decreto. E escute os depoimentos de diretores e professores de escolas inclusivas, além de pais de alunos que comprova a necessidade de continuar com TODAS as escolas de portas abertas para receber alunos com e sem deficiência JUNTOS!

Também conto como eu – Leandra Migotto Certeza, escritora e jornalista com deficiência – fiz a minha parte na construção de uma EDUCAÇÃO PARA TODAS E TODOS! 

O sonho de conviver com alunos sem deficiência durou pouco

Em 1982 os diretores de um colégio particular me aceitaram como uma aluna que – segundo o preconceito da época – não causaria ‘problemas’ aos outros colegas, professores ou pais, por causa da minha deficiência física. Por isso, consegui cursar o pré-primário em meio às delícias da infância. Comi muita areia, brinquei de pega-pega, “pulei” corda, cantei cantigas de roda, visitei parques, fiz desenhos, aprontei com massinha de modelar, “subi” em trepa-trepa, brinquei de roda, aprendi a ler e escrever. Aos cinco anos, dava um jeito de participar de tudo.

Como minhas pernas ainda não tinham força para aguentar meu corpo, usava o bumbum e corria pelo pátio junto com os amigos. Sabia que para fazer algumas coisas precisava de ajuda, como subir em uma cadeira ou escada, pegar um livro na estante, ir às excursões… Mas nunca deixei de ser e estar na escola! 

Segregação, exclusão e grades separavam os alunos na escola especial que fui obrigada a ser matriculada.

Porém, aos seis anos de idade, após diversas tentativas de minha mãe em me matricular na primeira série, em um colégio com alunos sem e com deficiência, acabei indo parar dentro de uma verdadeira jaula! E vivi a triste experiência de ser segregada a uma escola “especial”, conveniada a uma instituição assistencialista. O fato mais marcante era a existência de uma grade que nos separava do ‘outro mundo’ – o das crianças sem deficiência. Isso foi um horror!

Tínhamos que tomar lanche também em um pátio separado. Parecia que iríamos transmitir alguma doença contagiosa ou ‘aterrorizar’ as outras crianças com a nossa aparência diferenciada. Em um completo sistema segregacionista, éramos considerados coitadinhos que mereciam ‘cuidado especial’, mas fora do convívio com as outras pessoas. Não éramos vistos como cidadãos, com direitos e deveres. 

Depois de muita luta, finalmente, escolas inclusivas!

Depois, em 1986, após muitas andanças por aí e portas na cara, finalmente minha mãe conseguiu me matricular em uma escola regular particular. E mais uma vez, eu ainda era a única aluna com alguma deficiência que havia estudado lá. Pois, a maioria das mães encontra inúmeras dificuldades para conseguir que seus filhos fossem aceitos nas escolas públicas e privadas; uma vez que ainda não era lei, como é hoje, a obrigatoriedade em matricular qualquer aluno que batesse na porta de um colégio. 

Nessa escola inclusiva eu pude desenvolver todo o meu potencial de uma menina de 9 anos. Pois, nunca ninguém me tratou diferente na medida das minhas diferenças. A equiparação de oportunidade sempre foi usada para que eu me sentisse completamente incluída. O que significa isso? Quer dizer que, se eu precisasse de uma carteira mais baixa, uma rampa ou ser acompanhada por minha mãe em passeios, entre outras coisas, tudo era providenciado. 

Lá eu também pude contar com pessoas éticas, responsáveis, profissionais e acima de tudo humanas, que nunca me deixaram me sentir menor ou maior do que ninguém. Pois, tanto os diretores como os professores não tiveram receio em enfrentar uma situação nova e desafiadora. Acreditaram na minha capacidade, nas informações de minha mãe e acima de tudo na vida, pois ela, felizmente, não é dada igualmente a todos nós! E que é isso o que os educadores devem ter em mente hoje em pleno século 21: a diversidade faz parte da vida e, consequentemente, da vida das escolas! Então, por que fugir dela?

Em 1992, aos 15 anos consegui me matricular em um colégio também regular. Lá, felizmente, já encontrei outros alunos com alguma deficiência. No primeiro ano do colegial, éramos quatro: eu com Osteogenesis Imperfecta (formação óssea imperfeita, que pode acarretar, entre outros fatores, baixa estatura e dificuldade de andar, mas, principalmente, fragilidade óssea devido a não absorção de cálcio); um menino com paralisia cerebral (o que, superficialmente falando, é a falta de comunicação do cérebro com as partes do nosso corpo, e ocorre, na maioria das vezes na hora do parto, podendo comprometer os movimentos, a musculatura e a fala, mas em nada altera o raciocínio); uma menina surda, que fazia leitura labial e sabia um pouco da Libras – Língua Brasileira de Sinais; e um garoto com deficiência auditiva, que usava um aparelho para ouvir um pouco e falava muito bem. 

Nessa escola também fui muito bem aceita por todos durante os três anos. E, quando completei 17 anos, lutava mais pelos meus direitos. Então, solicitei algumas modificações físicas para garantir a acessibilidade às dependências do colégio. Infelizmente enfrentei maiores resistências, pois eu era a única que usava uma cadeira de rodas e os diretores temiam as possíveis “profundas mudanças” na estrutura física da escola. Porém, ter levado esse não na cara só me tornou mais corajosa em lutar pelos meus direitos!  

E hoje tenho certeza que eu estava certa, pois atualmente experiências bem sucedidas demonstram o quanto é possível fazer adaptações físicas na estrutura das escolas e dentro dos sistemas de comunicação, tecnologia e mão-de-obra financeiramente acessíveis. E, na maioria das vezes, com a reutilização e/ou reaproveitamento de materiais. Além do mais, a cada dia que passa aumenta o número de escolas construídas seguindo o conceito de Desenho Universal.

Por isso, eu acredito que para todos os alunos com deficiências estudarem em meio às crianças com e sem deficiência é extremamente importante ao estímulo do seu potencial, não subestimando-o. Portanto, o ambiente escolar inclusivo é a melhor solução para quebramos tabus e construirmos uma sociedade justa e solidária!

Cursinho pré-vestibular excludente 

Em 1995, eu fiz cursinho pré-vestibular e encontrei muitas dificuldades com as barreiras físicas e comportamentais. Nesta época, por ter voltado a caminhar, eu  usava um par de muletas, e era obrigada a subir poucos lances de escada com muita dificuldade. Pois, nunca ninguém se preocupou em construir uma rampa no lugar dos degraus da entrada do prédio, mesmo com a presença de uma aluna que usava cadeira de rodas e que também estava na mesma sala que eu. Ela tinha que ser carregada pela tia-avó (já com uma certa idade) todos os dias para conseguir estudar. 

Raramente, um aluno ou professor “dava uma força” para subir, mas nunca se preocuparam em proporcionar independência a ela, pois pagava em dia sua mensalidade, como todos os outros alunos, portanto tinha o direito à acessibilidade. Eu insistia para que ela e sua tia solicitasse aos diretores uma rampa, mas elas tinham medo de perder a vaga e o desconto no curso. E era óbvio que se tratava de uma relação extremamente assistencialista. Era como se a escola tivesse o terrível e completamente falso direito de dizer: “Você não tem do que reclamar. Afinal, deixamos você estudar aqui e ainda lhe ajudamos com um desconto”.

Desde aquela época, esse fato era inadmissível, e ainda mais hoje. Pois desde 1989, a Lei 7.853, em seu art. 8º, diz que: “… Constitui crime, punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa: I – recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta…” E no parágrafo único também está escrito que os órgãos públicos ou privados devem: “… proporcionar tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas: V – na área das edificações: a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, e permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte, e…”

Uma faculdade só se tornou acessível porque eu estudei lá!

É por isso que em 1996, quando passei no vestibular para cursar Comunicação Social em uma faculdade particular, não me preocupei em perguntar a diretoria se seria aceita. Estava pronta para acionar o Ministério Público caso ocorresse algum problema. Afinal, o processo de inclusão deve ser um mútuo conhecimento das especificidades entre as pessoas e o ambiente. 

Também é importante lembrar que na época algumas conquistas em termos de legislação já haviam sido alcançadas pelas pessoas com deficiência. Porém, ações eficazes ainda não eram colocadas em prática. E mesmo com um aluno em cadeira de rodas, uma aluna que usava andador, outra com a altura comprometida, além de mim (que usava um par de muletas e tinha a altura também abaixo de 1 metro), todas as instalações da faculdade não eram totalmente acessíveis. 

Quando perguntei o por quê, a coordenação informou que uma menina com dificuldade de altura já havia estudado lá. Mas todos a ajudaram a alcançar os locais mais altos, colocando banquinhos móveis e sem segurança para que ela subisse. E a única rampa, que dava acesso apenas a uma das salas de aula, foi construída para auxiliar um antigo aluno que usava uma cadeira de rodas. Assim, segundo a diretoria, as adaptações só eram feitas quando eles achavam necessárias. Ou seja, os diretores da faculdade não se conscientizaram sobre a importância da independência e autonomia das pessoas com deficiência. Era como se os alunos com deficiência fossem depender das outras pessoas durante toda sua vida ou deviam permanecer em um único espaço físico.

E por incrível que pareça, em 1998, mesmo cursando o terceiro ano nesta faculdade, a sala de aula onde eu estudava localiza-se no segundo andar do prédio. Com grandes dificuldades para subir uma escada de mais de 20 degraus, eu praticamente não descia durante o intervalo, pois o tempo não era suficiente para subir depois. Consequentemente, acabava ficando segregada de todo ambiente escolar. E só depois de dois meses de muitas reclamações e uma burocracia tremenda consegui mudar de sala.

Porém, a maior parte das dificuldades encontradas era em relação à falta das equiparação de oportunidades ao meio físico, pois o relacionamento com todos os professores e colegas foi tranquilo. Afinal, foi um grande aprendizado para todos, pois os professores e amigos também comentaram sobre a valiosa troca de experiências ao conviverem comigo.

Em 1999, no último ano da faculdade, já mais desinibida, comecei a reivindicar fortemente meus direitos. E a primeira grande luta foi conseguir uma vaga para estacionar o carro dos meus parentes ou amigos que me davam carona. Pois, de acordo com o Decreto 3.298 de 1999, em um dos Parágrafos Únicos, já determinava que: “… I – nas áreas externas ou internas da edificação, destinadas a garagem e a estacionamento de uso público, serão reservados dois por cento do total das vagas à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, garantidas no mínimo três, próximas dos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas e com as especificações técnicas de desenho e traçado segundo as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)…”

Mas, somente depois de diversas cartas ao diretor e reuniões adiadas com a coordenação – além de, literalmente, terem batido a porta na minha cara -, consegui solicitar a reserva de uma vaga em frente à faculdade. O que acabou finalmente colocando em prática o direito de ir, vir e permanecer em um estabelecimento de ensino, não apenas para mim, como para todos os demais alunos com alguma deficiência física. Assim, o aluno usuário de cadeira de rodas também pode usufruir desse direito, pois, infelizmente, as calçadas e ruas próximas à faculdade eram praticamente intransitáveis devido aos buracos e elevações. Porém, as adaptações nos banheiros só foram terminadas no final do ano em que eu estava me formando. E foi com alegria que finalmente encontrei rampas e portas largas dentro do banheiro, no último dia em que estive na faculdade, apresentando meu trabalho de conclusão de curso.

Sem alunos com deficiência nas escolas, elas nunca se tornarão totalmente inclusivas!

Hoje eu creio que o sistema de educação brasileira evoluiu em relação à inclusão de alunos com alguma deficiência uma dose de mudança de paradigma por parte da sociedade, sobre a diversidade humana e todo seu potencial. Porém, ainda estamos começando a caminhar na estrada de uma educação para TODOS!

Cabe a cada um fazer a sua parte com coragem e determinação, conscientes da realidade em que vivemos, mas nunca tirando um dos pés do terreno dos sonhos. Transformando-os em objetivos concretos e acessíveis: hoje, amanhã e sempre. Afinal, todos somos e estamos no mundo da forma que nos foi apresentada: humana.

Mais informações sobre Educação Inclusiva:

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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