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23 de agosto de 2019

Quais mulheres cabem no seu feminismo?

Não é feminismo se não tiver mulheres com deficiência

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“A mulher é um universo profundo. Comecei a mergulhar nela somente aos 30 anos de idade, quando meus desejos afloram mais. Meu corpo sempre foi ‘fraco’, ‘intocável’. Meus desejos sempre estiveram no mais profundo poço do inatingível.

Era… ‘Pecado tocar’… ‘Errado querer’… ‘Feio’… Todos apontavam. Todos comentavam. Todos olhavam. E eu nunca pude dizer há que vim. O que sou. O que desejo. O que espero. O que preciso mostrar…

Sempre fui tolhida. Sempre fui quebrada. Sempre senti dor. Sempre me senti presa a um ‘corpo infantilizado’. A um ‘meio corpo’. A uma meia ‘criança-menina-mulher’. A ‘algo indefinido’.

Hoje vejo que o corpo de uma mulher é múltiplo. É preciso mostrar ao mundo cada pedacinho que pulsa em corpos diferentes. São bocas em cabeças com várias formas, pernas grossas e curtas, bumbum arrebitado, coxas arredondadas e cheias de ruguinhas, púbis ardendo de tesão, seios pequenos em um tronco curto.

Não há cintura, não há quadril definido. Não há pernas finas e compridas. Não há balanço dos quadris. Não há andar sensual. Não há mini saia que leva ao “mistério escuro”. Não há uma mulher padronizada, robotizada, perfeita. Não há o esperado!

Há outra possibilidade de ser mulher inteira com todos os sentimentos e sentidos que pulsam do corpo de alguém que sempre foi quem é, mas tinha receio de se assumir. Amar e ser amada trouxe força à minha alma para conseguir se libertar da sociedade que sempre me tolheu. Hoje me sinto bem do jeito que sou.”

Quando comecei a me relacionar com o meu atual companheiro, diversas pessoas nas ruas riam debochando ou faziam comentários nos infantilizando: “que bonitinhos”; ou perguntavam quando iríamos ter filhos. Grande parte da minha família demorou bastante para aceitar que era possível vivermos juntos. E quando estávamos na nossa casa, me julgavam como e porque eu não sabia e nem queria cozinhar.

Primeiro sofri o preconceito capacitista (contra pessoas com deficiência) por não acreditarem na minha capacidade de viver um casamento.

Depois fui discriminada por não ser a ‘mulherzinha amélia’ padrão da sociedade (aquela que sabia, lavar, passar, limpar e cozinhar). 

Porém, o preconceito mais difícil de eliminar foi o da imposição da maternidade como algo natural e obrigatório. Eu mesma me sentia culpada por não engravidar ou não adotar uma criança. Lia os relatos de mães com deficiência (em sua maioria com lesão medular ou condições físicas bem diferentes da minha) e me questionada porque eu tinha recebido este ‘castigo’: nascido com dificuldades para manter uma gravidez. E quando ouvia as notícias de mães com a mesma deficiência que eu que conseguiram dar à luz a mais de dois filhos (crianças com ou sem deficiência), me sentia uma grande ‘covarde’. 

Leia também: O que falta em uma mulher com deficiência?

A culpa era ainda maior quando eu percebia que havia concordado com os alertas impositivos de 90% da minha família em relação à ‘loucura’ que seria engravidar na minhas condições físicas, e caso conseguisse parir, colocar no mundo mais um ‘fardo’: um ser humano com deficiência (no sentido mais estigmatizado que a palavra tem, ao olhar apenas para o que falta e não para os potenciais da pessoa).

Confesso que me questionei e me crucifiquei triplamente. Primeiro por escolher não ser mãe; segundo por me sentir fraca por não encarar uma gravidez de risco; e terceiro por ter receio de ter um filho com deficiência. Pensava: será que eu nem pensei na hipótese de engravidar porque tive pavor de desobedecer à minha família e à sociedade que julga como temeridade mulheres com deficiência ficarem grávidas? Ou será que eu teria a obrigação de ser mãe justamente para mostrar para a sociedade que eu poderia adotar e criar um filho, e conseguir “superar” todas as dificuldades que a minha deficiência traz?

Descrição da imagem: desenho de cinco mulheres diferentes vestidas com lingerie. Cada uma tem uma cor de pele, cabelo e formato de corpo. Elas estão abraçadas e com os olhos fechados sorrindo. Por trás delas há um raio de luz na cor lilás. E abaixo do desenho tem a seguinte frase escrita: “Não é feminismo se não tiver mulheres com deficiência” (Arte: Disbuga)

Com o passar dos anos, a maturidade da vida, a conversa com algumas mulheres com deficiência, as leituras e aprendizados solitários sobre feminismo, e após muito sofrimento interno e externo, finalmente, consegui me libertar da cruz que eu mesma pregara em meu corpo. E, principalmente, do calvário que a sociedade havia me aprisionado.

Leia também: Beleza: outra face da exclusão para mulheres com deficiência

Hoje eu sou uma mulher mais livre em meu pensar! O meu lugar de fala ainda é bem pouco ouvido dentro do movimento feminista e, menos ainda, em outros espaços da sociedade: no trabalho, na universidade, na mídia, nas igrejas, na política, nas artes, no esporte e tantos outros onde eu tenho direito de estar e permanecer com autonomia exatamente do jeito que eu sou.

Eu escolhi – e como é bom se permitir escolher – viver com meu companheiro sem sentir a imposição de cumprir ‘papéis sociais’ considerados padrão, não ser mãe por opção e, principalmente, não me sentir culpada por ter deixado de “seguir a boiada” em uma sociedade tão machista, sexista, heteronormativa, preconceituosa e discriminatória como a nossa.

Desde 2017, quando participei do Boteco da Diversidade (encontro paulista sobre sexualidade e deficiência) intensifiquei o meu contato com outras mulheres com deficiência que relataram também ter passado por situações bem semelhantes a minha. Elas afirmaram o quanto o peso da opressão ainda é bem mais forte na vida de quem luta diariamente para não ser invisibilizada, por caminhar, enxergar, ouvir ou pensar ‘diferente’ do suposto padrão social.

Por isso, eu questiono: o movimento feminista exclui as mulheres com deficiência? Creio que ainda sim… Mas acredito que podemos mudar isso. Convido a todas as mulheres a incluir quem tem deficiência nos movimentos feministas. Juntas, sempre somos mais fortes! 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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